Abordagem

O manejo da enxaqueca é geralmente multifacetado e adaptado a cada paciente. Ele se divide em:

  • Manejo imediato do ataque de enxaqueca

  • Manejo da enxaqueca em longo prazo.

O sucesso no tratamento de uma condição crônica, como a enxaqueca pediátrica, abrange vários aspectos importantes.

Primeiro, é necessário estabelecer uma relação terapêutica com o paciente e os pais, baseada na confiança e na transparência. Não é raro que os pais e, às vezes, as crianças se preocupem com a possibilidade de um diagnóstico subjacente mais grave. Uma anamnese e um exame físico minuciosos, seguidos por uma explicação detalhada, garantirão a compreensão e a adesão dos pais e pacientes ao plano de tratamento, além de minimizar investigações desnecessárias.

Outro aspecto importante da abordagem é estabelecer expectativas realistas para o tratamento. Embora o tratamento tenha como objetivo diminuir a frequência e a intensidade dos ataques, ele não previne nem trata de forma ideal cada ataque. É importante reconhecer e comunicar as limitações do tratamento disponível. Dessa forma, a confiança apenas no tratamento médico para melhorar a enxaqueca dos pacientes costuma ser decepcionante tanto para os pacientes quanto para os médicos. A instrução do paciente e dos pais sobre a enxaqueca é essencial e deve ser detalhada e holística.

Manejo do ataque agudo de enxaqueca

Quando os ataques de enxaqueca não são frequentes, o manejo do quadro agudo tem prioridade.

Os seguintes princípios são importantes ao elaborar um plano de manejo do quadro agudo de um ataque de enxaqueca:

  1. Quanto mais cedo o medicamento de resgate for administrado após o reconhecimento do ataque, maior será a probabilidade de aliviar os sintomas.[26]

  2. É necessário usar doses adequadas dos medicamentos de resgate; a subdosagem é desencorajada.

  3. A remoção do ambiente que causa ou contribui para os ataques de enxaqueca é essencial e deve ser feita o quanto antes.

  4. O sono é muito bom para interromper um ataque e deve ser incentivado, sempre que possível.

  5. Qualquer tratamento abortivo usado várias vezes por semana em longo prazo pode causar cefaleias por efeito rebote.

O papel do médico é fornecer ferramentas e diretrizes para o paciente (e os pais) e elaborar um plano de manejo sólido e personalizado. Pacientes e pais são incentivados a explorar e modificar a intervenção para descobrir o que funciona melhor para eles. A eficácia de vários medicamentos abortivos está longe de ser perfeita, mesmo em cenários ideais. Testar um medicamento abortivo específico durante vários ataques ajuda a estabelecer sua utilidade. Não é incomum experimentar alguns medicamentos abortivos antes de definir qual funciona melhor. A exploração dos ataques do paciente retrospectivamente, no dia seguinte, ajudará o paciente a entender como melhorar o relato do início do ataque, captar a aura ou os sintomas premonitórios e refinar ainda mais a intervenção.

A escolha de um tratamento abortivo deve levar em consideração a capacidade da criança de deglutir comprimidos, a frequência com que os vômitos acompanham um ataque de enxaqueca e a resposta da criança aos medicamentos testados anteriormente e à respectiva formulação, bem como as preferências do paciente e dos pais.

Analgésicos de venda livre

  • A autoadministração de analgésicos de venda livre, como o ibuprofeno (um anti-inflamatório não esteroidal [AINE]) ou o paracetamol, é uma abordagem razoável de primeira linha para manejar ataques de enxaqueca, apesar das limitadas evidências de eficácia. O ibuprofeno é o tratamento preferido, pois há mais evidências de sua eficácia.[26][28][29] [ Cochrane Clinical Answers logo ] ​​​​​

  • Em casos em que, apesar da dosagem adequada, um desses medicamentos seja ineficaz, outro medicamento poderá ser experimentado.[26] Analgésicos de venda livre são fornecidos em várias formulações, o que permite que sejam usados em crianças cujos ataques de enxaqueca são frequentemente associados a vômitos. Os efeitos adversos são geralmente leves e limitados a desconforto estomacal associado ao ibuprofeno. Pais e pacientes precisam ser alertados sobre o risco de danos hepáticos graves mediante várias doses diárias e recorrentes de paracetamol.

  • Medicamentos combinados de venda livre, como os que contêm aspirina e cafeína, às vezes são considerados úteis pelos pacientes. Pacientes e familiares precisam ter ciência das questões relacionadas à síndrome de Reye quando medicamentos combinados que contêm aspirina são usados em crianças e adolescentes, especialmente naqueles que se recuperam de doenças virais, como influenza e varicela.

Triptanos (agonistas do receptor 5-HT1)

  • Os triptanos são indicados para pacientes que não apresentam alívio significativo com analgésicos de venda livre.[26][28] [ Cochrane Clinical Answers logo ] [ Cochrane Clinical Answers logo ]

  • Vários triptanos são licenciados para uso em crianças. Nos EUA, a rizatriptana é aprovada para uso em crianças com idade ≥6 anos. Outros triptanos são aprovados nos EUA para uso em crianças com idade ≥12 anos (por exemplo, almotriptana, spray nasal de zolmitriptana). Uma formulação combinada de sumatriptana/naproxeno foi também aprovada para uso em pacientes com idade ≥12 anos. O licenciamento para crianças pode diferir em outros países (por exemplo, a sumatriptana é aprovada para uso em crianças em alguns países).

  • Nem todos os triptanos já foram estudados na população pediátrica. A resposta dos sintomas a tratamentos abortivos, inclusive triptanos, pode levar até 2 horas; as formulações intranasais podem ter um início de ação mais rápido.[26]​ Pacientes que tomam sumatriptana/naproxeno ou usam spray nasal de zolmitriptana têm maior probabilidade de não apresentarem cefaleia em um período de 2 horas, em comparação com o placebo.[26]

  • A zolmitriptana e a sumatriptana estão disponíveis como formulações intranasais, oferecem início de ação mais rápido e são boas opções em pacientes com vômitos frequentes. Uma resposta desfavorável a um triptano específico não impede uma melhor resposta a outros triptanos. Se houver resposta incompleta a um triptano e/ou recorrência da cefaleia em 24 horas, uma segunda dose de triptano poderá ser administrada ​​2 horas após a dose inicial.

  • Há risco de cefaleias por efeito rebote com o uso frequente de medicamentos abortivos, sendo fundamental que os médicos enfatizem o uso criterioso desses medicamentos e instruam pacientes e pais sobre o risco de cefaleias por uso excessivo de medicamentos. Esse risco parece ser maior com triptanos (assim como com opioides).[30]

  • Os triptanos são contraindicados em caso de enxaqueca hemiplégica e enxaqueca com sintomas no tronco encefálico. Além disso, os triptanos são contraindicados em pacientes com doença vascular isquêmica, vias acessórias cardíacas ou história de AVC.

Pacientes com respostas insatisfatórias a triptanos podem ser aconselhados a combinar o triptano com um AINE, o que mostrou melhores resultados em adultos do que a administração de qualquer um dos medicamentos isoladamente.[31]

Como náuseas e vômitos são frequentemente associados à enxaqueca pediátrica e os triptanos não apresentam efeito significativo sobre esses sintomas, alguns médicos defendem o uso de antieméticos.[26]​ Entretanto, é essencial ter em mente que muitas crianças se sentem muito melhor logo após vomitarem. A escolha de adicionar um antiemético ao plano de tratamento abortivo da criança depende da preferência do paciente e dos pais.

Opioides e barbitúricos, isolados ou em combinação com outros medicamentos, como paracetamol, aspirina e cafeína, nunca devem ser usados como tratamento de primeira linha da enxaqueca pediátrica. Eles têm pouca função no tratamento da enxaqueca pediátrica por causa do risco de dependência e de cefaleias por uso excessivo de medicamentos com uso frequente e regular.

Manejo de episódios recorrentes

Mudanças no estilo de vida

  • Há pelo menos um subgrupo de pacientes que obtém melhora acentuada na frequência e gravidade dos ataques de enxaqueca por meio de mudanças no estilo de vida. Para cada paciente, vários aspectos são mais importantes do que outros, sendo aconselhável que o médico investigue os fatores indicados abaixo. Não se sabe ao certo quais desses fatores de estilo de vida são os mais significativos.​[5][32]

  • É amplamente aceito que a má qualidade do sono e o estresse psicológico são os principais fatores agravantes da enxaqueca, responsáveis, pelo menos em parte, pelo aumento da frequência e gravidade, bem como pela transformação da enxaqueca episódica em enxaqueca crônica.[33]​ Isso se aplica especialmente a adolescentes. Uma investigação mais aprofundada dessas áreas e a incorporação de mudanças significativas de estilo de vida no plano de tratamento são necessárias para o sucesso em médio e longo prazo.

  • A quantidade recomendada de sono para crianças e adolescentes é de 10 e 9 horas por noite, respectivamente.[34]​ Embora cochilos ocasionais à tarde sejam bons, cochilos de rotina depois da escola podem ser prejudiciais, pois tendem a reduzir a quantidade de sono verdadeiramente restaurador que os pacientes têm durante a noite. O ato de acordar tarde nos finais de semana e durante as férias tem um efeito semelhante no sono noturno. Ocorre um estado de fadiga crônica e, com isso, uma maior propensão a desenvolver um ataque de enxaqueca e uma tendência de que a cefaleia se torne crônica. Depois de obter uma história detalhada do sono, o médico, usando elementos de educação sobre higiene do sono e terapia cognitivo-comportamental para insônia, pode elaborar um plano de melhora do sono criterioso, realista e individualizado. O início do sono pode ser promovido pela administração de medicamentos preventivos ao deitar, se usados, pois muitos têm um efeito mais ou menos sedativo (a ciproeptadina, por exemplo, pode ser muito útil desse ponto de vista), ou pela adição de melatonina. Como alternativa, pode-se solicitar encaminhamento para uma clínica pediátrica do sono.

  • O estresse psicológico, no que diz respeito à enxaqueca, advém mais frequentemente de desafios ou expectativas acadêmicos e conflitos sociais na escola ou em casa.[21]​ Não é raro que haja também elementos de ansiedade e depressão envolvidos. Os planos de atenuação do estresse podem variar de um simples ajuste temporário das demandas escolares a uma intervenção psicológica intensiva e envolvimento de um psiquiatra e/ou psicólogo pediátrico.

  • Atos como deixar de fazer determinadas refeições, um estilo de vida excessivamente desorganizado, falta de hidratação, sedentarismo, excesso de cafeína e excesso de tempo em frente às telas são outros fatores de estilo de vida que podem afetar a frequência e a gravidade da enxaqueca do paciente.[5]

Farmacoterapia preventiva

  • O tratamento farmacológico preventivo é recomendado quando as cefaleias ocorrem, em média, pelo menos uma vez por semana, sobretudo se causarem absenteísmo escolar ou afetarem a vida social da criança. Intervenções não farmacológicas direcionadas a mudanças no estilo de vida e à prevenção de fatores desencadeantes são empregadas concomitantemente para maximizar a taxa de resposta e melhorar a frequência das cefaleias de forma duradoura.

  • Vários medicamentos são usados para a prevenção da enxaqueca. Embora as evidências de eficácia sejam escassas, o uso deles se baseia em recomendações de especialistas e evidências derivadas de estudos pediátricos e adultos.[5]​ Os ensaios clínicos sobre enxaqueca pediátrica são marcados por uma taxa de resposta muito alta ao placebo. É necessário um ponderação cautelosa entre a eficácia e os efeitos adversos dos medicamentos preventivos.

  • Embora alguns pacientes respondam rapidamente, o cenário mais comum é uma melhora lenta ao longo de semanas a meses. Os pacientes são encorajados a solicitar uma revisão com o médico se não responderem no prazo de 1 mês, quando se deve fazer um ajuste de dosagem ou a tentativa de um medicamento diferente.

  • A duração do tratamento varia de um paciente para outro. Geralmente, é aconselhável interromper o medicamento preventivo se as cefaleias enxaquecosas estiverem bem controladas por alguns meses e reiniciá-lo somente se voltarem.

  • A maioria dos pacientes responde a um único medicamento preventivo, sendo raramente necessária a polimedicação. A escolha do medicamento preventivo é ditada pelas preferências de cada paciente e pelo perfil de efeitos adversos.

  • O topiramato, um anticonvulsivante, é frequentemente usado para prevenir enxaquecas pediátricas e é aprovado nos EUA para a prevenção de enxaquecas em crianças com idade ≥12 anos. O topiramato possivelmente tem maior probabilidade do que o placebo de diminuir a frequência de cefaleias.[5]​ No entanto, não há evidências suficientes de que o topiramato diminua os dias de cefaleia em mais de 50% ou diminua a incapacidade relacionada à enxaqueca.[5] Pacientes e familiares devem ter ciência dos efeitos adversos, que incluem perda de peso, parestesia, nefrolitíase e confusão mental, e como reconhecê-los e mitigá-los.

    • A exposição ao topiramato durante a gestação está associada a transtornos do neurodesenvolvimento infantil e malformações congênitas.[35][36]​​

    • Em alguns países, o topiramato é contraindicado para mulheres em idade fértil, a menos que as condições de um programa de prevenção da gestação sejam atendidas para garantir que as pacientes em idade fértil: estejam usando métodos de contracepção altamente eficazes; tenham feito um teste de gravidez para descartar gravidez antes de iniciar o tratamento com topiramato; e estejam cientes dos riscos associados ao uso do medicamento.[37][38]​​

  • Antidepressivos tricíclicos (por exemplo, amitriptilina) são frequentemente usados na prevenção da enxaqueca pediátrica, embora os dados sobre eficácia sejam limitados.[5]​ A amitriptilina combinada com a terapia cognitivo-comportamental (TCC) mostrou maior redução nos dias de cefaleia e na incapacidade relacionada à enxaqueca em comparação com a educação sobre a amitriptilina e a enxaqueca.[5][39]​​ A amitriptilina deve ser usada com extrema cautela em crianças com depressão devido ao possível aumento do risco de ideação e comportamento suicidas.

  • O propranolol, um betabloqueador, tem evidências limitadas de eficácia e deve ser usado com cautela em pacientes com asma e depressão.[5] Atletas (que precisam de adrenalina para seu desempenho) podem ficar relutantes em usá-lo.

  • A ciproeptadina, um anti-histamínico com efeitos antagonistas da serotonina e anticolinérgicos, é comumente usada em crianças e adolescentes e apresenta algumas evidências de eficácia.[40]​ O ganho de peso e a sonolência são os principais fatores limitantes.[41]

  • A cinarizina tem mostrado alguns benefícios na prevenção da enxaqueca. Os riscos de ganho de peso e efeitos extrapiramidais parecem baixos.[5][42]​​​ No entanto, ela não está disponível nos EUA.

  • Outros medicamentos têm sido usados como profilaxia para a enxaqueca, mas não há evidências de eficácia em crianças. Eles podem incluir ácido valproico, flunarizina, gabapentina, nimodipina e verapamil. O perfil de efeitos adversos desses medicamentos geralmente determina o uso. O uso desses medicamentos só deve ser iniciado e supervisionado por um especialista em neurologia pediátrica.

  • Há poucas evidências disponíveis que respaldem o uso do pizotifeno, mas ele é prescrito em alguns países como profilaxia para enxaqueca. No entanto, por razões comerciais, o fabricante descontinuou o medicamento em alguns países, e o medicamento pode não estar mais disponível.

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