Abordagem

A febre reumática aguda é diagnosticada clinicamente, não existindo um teste diagnóstico isolado para a doença. Embora a apresentação mais comum seja a febre e artrite, é necessária uma consideração cuidadosa de todas as manifestações da febre reumática aguda, além da consideração dos diagnósticos alternativos para cada manifestação.

Os critérios diagnósticos para febre reumática evoluíram desde a publicação dos critérios originais de Jones em 1944.[57] Na era moderna, os critérios para o diagnóstico evoluíram para serem mais sensíveis em populações com altas incidências de febre reumática e para reconhecer o papel da ecocardiografia e um espectro mais amplo de manifestações articulares.

Um guia útil para o diagnóstico pode ser encontrado na atualização de 2015 dos critérios de Jones, que destacam uma abordagem diagnóstica de 4 sintomas/sinais manifestos: coreia, artrite, cardite clínica e eritema marginado/nódulos subcutâneos.[2]

Abordagens algorítmicas igualmente úteis estão contidas em diretrizes publicadas na Austrália e Nova Zelândia. Australian guideline for prevention, diagnosis and management of acute rheumatic fever and rheumatic heart disease Opens in new window Heart Foundation of New Zealand: diagnosis, management and secondary prevention of acute rheumatic fever and rheumatic heart disease Opens in new window

Diagnóstico de episódios primários: critérios de Jones

O diagnóstico da febre reumática aguda é feito com base na identificação das manifestações clínicas principais e secundárias da doença, conforme detalhadas pelos critérios de Jones. A revisão mais recente dos critérios de Jones, publicada em 2015, fornece 2 grupos separados de critérios: um para cenários de baixo risco (isto é, aqueles com incidência de febre reumática de ≤2 a cada 100,000 crianças em idade escolar ou prevalência de doença reumática cardíaca [DRC] em todas as idades de ≤1 a cada 1000 pessoas por ano) e um para as populações de risco moderado a alto.[2]

O diagnóstico de um episódio primário de febre reumática aguda pode ser realizado se algum dos critérios a seguir for atendido.

  • Evidências de infecção recente por estreptococos do grupo A com presença de pelo menos 2 manifestações principais ou 1 manifestação principal juntamente com 2 manifestações secundárias.

  • Coreia reumática: pode ser diagnosticada sem a presença de outras características (que é descrita como "coreia isolada") e sem evidências de infecção anterior por estreptococos. Pode ocorrer até 6 meses após a infecção inicial.

  • DRC crônica: primeiros episódios de doença da valva mitral estabelecida ou doença mista da valva mitral/aórtica (na ausência de quaisquer sintomas sugerindo febre reumática aguda).

Os critérios de 2015 também permitem o diagnóstico de possível febre reumática. Esta categoria de diagnóstico inclui aquelas situações nas quais um determinado quadro clínico não cumpre com os critérios de Jones revisados, mas o médico ainda assim tem bons motivos para suspeitar do diagnóstico.

Manifestações principais e secundárias

Cinco manifestações são consideradas as principais manifestações da febre reumática aguda:[2]

  • Cardite: inclui cardite demonstrada somente por ecocardiografia (isto é, cardite subclínica).

  • Artrite: poliartrite (populações de baixo risco) ou monoartrite ou poliartrite ou poliartralgia (populações de risco moderado a alto).

  • Coreia.

  • Eritema marginado: erupção cutânea rosa serpiginosa com bordas bem definidas. O eritema começa como mácula e vai se expandindo, clareando no centro. A erupção cutânea pode aparecer e logo desaparecer enquanto o médico estiver examinando o paciente, dando origem ao termo descritivo de pacientes com “anéis de fumaça” debaixo da pele.

  • Nódulos subcutâneos.

Quatro manifestações são consideradas manifestações menores de febre reumática aguda:[2]

  • Febre: ≥38.5 °C (≥101.3 °F; populações de baixo risco) ou ≥38.0 °C (≥100.4 °F; populações de risco moderado a alto).

  • Artralgia: poliartralgia (populações de baixo risco) ou monoartralgia (populações de risco moderado a alto).

  • Marcadores inflamatórios elevados: velocidade de hemossedimentação (VHS) ≥60 mm/hora e/ou proteína C-reativa ≥28.57 nanomoles/L (≥3.0 mg/dL) (populações de baixo risco) ou VHS ≥30 mm/hora e/ou proteína C-reativa ≥28.57 nanomoles/L (≥3.0 mg/dL) (populações de risco moderado a alto).

  • Intervalo PR prolongado no eletrocardiograma depois de se levar em conta a variabilidade pela idade: um intervalo PR prolongado, que se resolve em 2 ou 3 semanas, pode ser um recurso diagnóstico útil nos casos em que as características clínicas não são definitivas. O bloqueio atrioventricular de primeiro grau eventualmente leva a um ritmo juncional. O bloqueio de segundo grau e também o bloqueio completo são menos comuns, mas podem ocorrer. Num ressurgimento da febre reumática aguda nos EUA, 32% dos pacientes apresentavam condução atrioventricular anormal.

É importante observar que, em pacientes nos quais a artrite é considerada uma manifestação principal, não é possível considerar a artralgia uma manifestação secundária. Em pacientes nos quais a cardite é considerada uma manifestação principal, não é possível considerar o intervalo PR uma manifestação secundária. Consulte Critérios.

Cardite: quadro clínico

A cardite reumática se refere à inflamação ativa do miocárdio, do endocárdio e do pericárdio ocorrida na presença de febre reumática. Se por um lado a miocardite e a pericardite podem ocorrer na febre reumática, a manifestação predominante da cardite é o comprometimento do endocárdio, que se apresenta na forma de valvulite, especialmente das valvas mitral e aórtica. A cardite é diagnosticada pela presença de um sopro significativo, ou pelo surgimento de aumento cardíaco acompanhado por insuficiência cardíaca inexplicável ou pela presença de atrito pericárdico. Além disso, a evidência de valvulite no ecocardiograma (usando critérios publicados) é agora considerada uma manifestação de cardite.[2][58]

A regurgitação mitral é a manifestação clínica mais comum da cardite, podendo ser auscultada na forma de sopro pansistólico com intensidade máxima no ápice. A insuficiência cardíaca ocorre em <10% dos episódios primários da febre reumática.[59][60] A dispneia pode estar relacionada à insuficiência cardíaca. A pericardite é incomum na febre reumática aguda e, quando ocorre, é geralmente acompanhada por valvulite significativa. Deve-se suspeitar de pericardite nos pacientes com dor torácica, pulsos diminuídos, atrito pericárdico à ausculta ou aumento da área cardíaca na radiografia torácica. Os indivíduos com cardite reumática podem apresentar palpitações associadas a bloqueio atrioventricular avançado.

A evidência ecocardiográfica na ausência de achados clínicos de cardite (isto é, cardite subclínica) agora é considerada suficiente como uma manifestação principal de febre reumática aguda. Há achados de Doppler e morfológicos específicos na ecocardiografia que devem ser atendidos.[2]

A cardite recorrente pode ser difícil de se diagnosticar, mas é mais provável se o primeiro episódio de febre reumática incluir cardite e o paciente não estiver recebendo profilaxia secundária com penicilina contínua. Pode-se suspeitar por um sopro novo, novos sinais de insuficiência cardíaca congestiva, evidência radiográfica de aumento cardíaco ou agravamento das alterações ecocardiográficas.

Envolvimento articular: quadro clínico

O envolvimento articular ocorre em mais de 75% dos casos de febre reumática primária, podendo ser uma manifestação maior ou uma manifestação menor.[60][61] A história clássica do comprometimento articular na febre reumática aguda é a de uma poliartrite migratória de grandes articulações, que pode ser migratória ou aditiva. Se o paciente apresenta monoartrite e há suspeita de febre reumática aguda, não atendendo, porém, os critérios diagnósticos, não se deve administrar anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) para não mascarar o surgimento da poliartrite migratória (uma manifestação importante). A artrite da febre reumática aguda é bastante sensível a salicilatos como a aspirina (bem como a outros AINEs), e os sintomas articulares tipicamente respondem após vários dias de tratamento com esses anti-inflamatórios.

Coreia: quadro clínico

Em 5% a 10% dos pacientes, a coreia faz parte da apresentação aguda.[60][62] Também pode ocorrer como achado isolado até 6 meses após a infecção inicial por estreptococos do grupo A. Também é conhecida como coreia de Sydenham (denominada pelo nome do médico que descreveu a dança-de-são-vito no século XVII).

A história pode ser a de uma criança que fica inquieta na escola, seguida por um aparente desajeitamento com movimentos descoordenados e erráticos, muitas vezes correlacionada com história de instabilidade emocional e outras alterações de personalidade. Os movimentos coreiformes podem afetar todo o corpo ou apenas um lado do corpo (hemicoreia). Muitas vezes, a cabeça também é afetada, com movimentos erráticos da face que parecem caretas, sorrisos e carrancas. A língua, se afetada, pode parecer um “saco de vermes” quando estendida, não sendo possível manter a protrusão. Em casos graves de coreia, isso pode prejudicar a capacidade de comer, escrever ou caminhar, colocando a pessoa sob risco de lesão. A coreia desaparece durante o sono, e se torna mais acentuada com movimentos intencionais. Tipicamente, quando o médico pede ao paciente que aperte a sua mão, o paciente não consegue manter a preensão, resultando em um aperto rítmico. Isso é conhecido como o sinal de "mão em ordenha". Outros sinais da coreia incluem o uso de colher (flexão no punho com a extensão do dedo quando a mão é estendida) e o sinal do pronador (quando as palmas das mãos se voltam para fora quando seguradas acima da cabeça). A recorrência e as flutuações da coreia reumática não são incomuns, sendo frequentemente associadas à gravidez, à doença intercorrente ou à pílula contraceptiva oral.

Investigações

O diagnóstico da febre reumática requer uma série de investigações. O conjunto mínimo de investigações necessárias para uma suspeita de febre reumática aguda é:[63]

  • VHS, proteína C-reativa e contagem de leucócitos: dados da Austrália identificaram que a proteína C-reativa e a VHS frequentemente se encontravam elevadas em pacientes com febre reumática aguda confirmada (sem coreia), ao passo que a contagem de leucócitos geralmente não se apresentava elevada.[64]​ Por isso, os autores não recomendam a inclusão da contagem leucocitária no diagnóstico da febre reumática.

  • Hemoculturas (em caso de febre): ajudam a excluir outras causas infecciosas, particularmente infecções ósseas e articulares e endocardite infecciosa.

  • Eletrocardiograma: para verificar o prolongamento do intervalo PR.

    [Figure caption and citation for the preceding image starts]: Eletrocardiograma (ECG) mostrando bloqueio atrioventricular na febre reumática agudaAust N Z J Med. 1996 Apr;26(2):241-2; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@3d1f84f3

  • Radiografia torácica caso haja evidências clínicas ou ecocardiográficas de cardite.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Radiografia torácica de insuficiência cardíaca biventricular ocasionada por cardite aguda na febre reumáticaLancet. 2006 Jun 24;367(9528):2118; usado com permissão [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@42fe518c

  • Ecocardiograma: para procurar evidências de cardite aguda e/ou DRC. O papel da ecocardiografia no diagnóstico de febre reumática aguda já foi controverso;[65][66] entretanto, atualmente é aceito que a ecocardiografia é mais sensível e específica que a ausculta cardíaca para a identificação de valvopatia reumática.[67][68] Recomenda-se a realização de ecocardiografia em todos os pacientes com suspeita de febre reumática aguda, com ou sem evidência clínica de cardite. Se inicialmente negativa, ela pode ser repetida após 2-4 semanas, uma vez que a cardite pode evoluir ao longo de várias semanas e a sua presença ou ausência pode ter implicações importantes para o diagnóstico e o manejo contínuo. Há achados morfológicos e de Doppler típicos da febre reumática publicados (veja abaixo).[2] Além disso, a ecocardiografia é útil na classificação da gravidade da cardite reumática e na diferenciação entre a patologia valvar congênita e a adquirida, e pode ser usada para investigar o dano valvar suspeitado.

  • Cultura faríngea: cultura para estreptococo do grupo A (de preferência antes do início da antibioticoterapia). Menos de 10% das culturas faríngeas são positivas para estreptococos do grupo A, o que reflete a natureza pós-infecciosa da doença.[69] Geralmente, os estreptococos do grupo A são erradicados antes do início da doença.

  • Sorologia antiestreptocócica: títulos de antiestreptolisina O e anti-DNase B. Caso o primeiro teste não seja confirmatório, deve ser repetido 10 a 14 dias depois. Isso é recomendado em todos os casos de febre reumática aguda, uma vez que culturas faríngeas e testes rápidos de antígenos frequentemente são negativos.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Valores normais dos títulos de antiestreptolisina O (ASO) e anti-DNase BTabela compilada por colaboradores. [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@4a48a830

  • Testes rápidos de antígeno: para estreptococo do grupo A (se disponível) É importante observar que os testes rápidos de antígeno podem ter um valor preditivo positivo e negativo pior para a faringite estreptocócica do grupo A em comparação com a cultura faríngea. Seu uso depende do contexto epidemiológico e testes rápidos de antígeno podem não ser apropriados para uso em populações com alta incidência de febre reumática quando as culturas podem ser realizadas.[70][71] Os testes rápidos de antígenos precisam de testagem da sensibilidade e da especificidade locais.

  • Testes moleculares rápidos: para estreptococos do grupo A (se disponíveis). Ensaios de reação em cadeia da polimerase (PCR) podem ser usados de maneira remota, com sensibilidade e especificidade comparáveis às da cultura faríngea.[72][73][74] O uso de testes moleculares no local de atendimento tem potencial para ampla aplicação, especialmente em cenários rurais de alta incidência.[75]

Ecocardiografia

Foram publicados achados morfológicos e de Doppler típicos de cardite reumática aguda.[2]

Achados de Doppler na valvulite reumática

  • Regurgitação mitral patológica (todos os 4 critérios são atendidos):

    • Observada em pelo menos duas visualizações

    • Comprimento de jato ≥2 cm em pelo menos uma visualização

    • Velocidade de pico >3 m/s

    • Jato pansistólico em pelo menos um envelope.

  • Regurgitação aórtica patológica (todos os 4 critérios são atendidos):

    • Observada em pelo menos duas visualizações

    • Comprimento de jato ≥1 cm em pelo menos uma visualização

    • Velocidade de pico >3 m/s

    • Jato pansistólico em pelo menos um envelope.

Achados morfológicos na ecocardiografia na valvulite reumática

  • Alterações na valva mitral aguda

    • Dilatação anular

    • Alongamento das cordas

    • Ruptura das cordas resultando em instabilidade do folheto com regurgitação mitral grave

    • Prolapso da ponta do folheto anterior (ou, menos comumente, posterior)

    • Beading/nodularidade de pontas do folheto.

  • Alterações na valva mitral crônica (não observadas na cardite aguda)

    • Espessamento do folheto

    • Espessamento de corda e fusão

    • Movimento de folheto restrito

    • Calcificação.

  • Alterações na valva aórtica na cardite aguda ou crônica

    • Espessamento do folheto focal ou irregular

    • Defeito de coaptação

    • Movimento de folheto restrito

    • Prolapso de folheto.

Diagnóstico da febre reumática recorrente

A recorrência da febre reumática, com ou sem evidência de DRC estabelecida, exige os mesmos critérios que um episódio primário (isto é, 2 manifestações principais ou 1 manifestação principal associada a 2 secundárias) ou pode ser diagnosticada na presença de 3 manifestações secundárias. O diagnóstico de recidiva requer evidência de uma infecção recente por estreptococos do grupo A. Tal como para os episódios primários, é importante que outros diagnósticos sejam descartados.[1]

Demonstração de infecção antecedente por estreptococos do grupo A

É possível demonstrar evidências de infecção antecedente por estreptococos do grupo A mediante demonstração de 1 dos fatores a seguir:

  • Título de anticorpos estreptocócicos elevado ou em elevação

  • Cultura faríngea positiva

  • Teste rápido de antígeno para estreptococos do grupo A positivo (ver comentários acima)

  • Escarlatina recente.

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