Abordagem

O padrão-ouro para o diagnóstico de miocardite é a biópsia endomiocárdica (BEM). No entanto, esse exame tem um rendimento de 10% a 20% e não é indicado para a maioria dos pacientes com suspeita de miocardite.[4][55]​​​​ Portanto, a avaliação adequada dos pacientes com suspeita de miocardite começa com uma anamnese e um exame físico completos. Se ainda houver suspeita de miocardite, investigações adicionais com um ECG de 12 derivações, avaliação laboratorial de biomarcadores cardíacos e ecocardiografia bidimensional deverão ser realizadas.[16][21]​​​​[56]​ Não há consenso geral sobre quais pacientes devem ser submetidos à BEM; as diretrizes locais devem ser consultadas.[5][55][57][58][59]​​​​​​​ Foi demonstrado que a ressonância nuclear magnética (RNM) cardíaca com contraste ajuda no diagnóstico de miocardite ao fornecer uma caracterização detalhada dos tecidos.[16][21]​​​​[56][60]​​​ ​​A tomografia por emissão de pósitrons/tomografia computadorizada (PET-CT), especialmente a PET-CT com 18F-fluordesoxiglucose (FDG), também pode ser valiosa.[21]

A abordagem pode ser modificada para as crianças com suspeita de miocardite. A declaração de 2021 da American Heart Association (AHA) sobre miocardite pediátrica estabelece um novo paradigma para a miocardite, com base em estratos diagnósticos, e também fornece orientações sobre a abordagem.[15] A declaração da AHA classifica a miocardite em 1) comprovada por biópsia, 2) confirmada por RNM cardíaca, 3) com suspeita clínica, e 4) possível miocardite.[15] Assim, quando for possível e seguro, a BEM continua sendo o padrão de referência para o diagnóstico de miocardite confirmada em crianças. Na ausência de biópsia, o diagnóstico clínico com ou sem RNM fornecerá as informações necessárias para o diagnóstico.[15]

História

Os pacientes que se apresentam com miocardite geralmente têm idade <50 anos. Normalmente existe uma história de pródromo viral 2 a 3 semanas antes do início da miocardite. Os sintomas podem incluir dor torácica, dispneia, ortopneia, síncope, fadiga e palpitações.[16]

Em crianças, o pródromo viral será a história mais comum, seguido por história sugestiva de arritmias ou síncope.[15] Os sintomas comuns incluem febre, fadiga, sintomas respiratórios, dor abdominal, êmese e letargia.[15]

A história médica do paciente pode ser significativa quanto à ocorrência de doenças autoimunes, como doenças vasculares do colágeno, além de doença inflamatória intestinal, diabetes mellitus, sarcoidose, tireotoxicose, granulomatose com poliangiite (anteriormente conhecida como granulomatose de Wegener) ou síndrome de Loeffler. Além disso, uma história de viagem a áreas endêmicas onde são encontrados organismos causadores pode sugerir uma etiologia infecciosa específica.

Deve ser obtida uma história medicamentosa completa, juntamente com outras possíveis exposições a substâncias tóxicas ou cocaína, para descartar qualquer etiologia relativa a medicamentos ou substâncias tóxicas. Elas incluem antraciclinas (por exemplo, doxorrubicina, daunorrubicina, epirrubicina, idarrubicina), fluoropirimidinas (por exemplo, fluoruracila, capecitabina), imunoterapias (por exemplo, ipilimumabe, tremelimumabe, nivolumabe, pembrolizumabe, cemiplimabe, atezolizumabe, avelumabe, durvalumabe e trastuzumabe), arsênico, zidovudina, monóxido de carbono, etanol, ferro, interleucina-2, cocaína, anfetamina, vacina contra varíola ou mpox (varíola símia), vacina de RNAm contra SARS-CoV-2 (COVID-19; pode ocorrer com outros tipos de vacinas contra COVID-19), catecolaminas (por exemplo, adrenalina, noradrenalina, dopamina), ciclofosfamida, metais pesados (cobre, ferro, chumbo), radiação, antibióticos (penicilinas, cefalosporinas, sulfonamidas), anfotericina B, diuréticos tiazídicos, anticonvulsivantes (carbamazepina, fenitoína, fenobarbital), digoxina, lítio, amitriptilina, clozapina, veneno de cobra, veneno de abelha, veneno de aranha viúva-negra, veneno de escorpião e veneno de vespa.

Exame físico

Deve ser realizado um exame físico completo para a pesquisa de achados cardiorrespiratórios e outros achados gerais que possam indicar a possível etiologia. Os achados podem incluir estertores, estase jugular, B3 em galope e galope de somação B3 e B4, atrito pericárdico, hipoperfusão periférica, taquicardia sinusal, arritmia atrial e ventricular, hipotensão, alteração sensorial, hepatomegalia e linfadenopatia. A taquicardia em repouso é um sinal especialmente importante em adolescentes, em quem os sintomas podem ser mascarados significativamente nas miocardites aguda e crônica.

eletrocardiograma (ECG) de 12 derivações

Um ECG de 12 derivações deve ser imediatamente solicitado para qualquer paciente que apresentar dor torácica ou sintomas cardíacos.[15][16]​​ Na miocardite, o ECG mostra mais comumente anormalidades inespecíficas do segmento ST e da onda T; entretanto, frequentemente ocorrem o supra e o infradesnivelamento do segmento ST. As crianças podem apresentar arritmias atriais e ventriculares, e essa apresentação pode ser um indicador de desfechos desfavoráveis.[61] Um componente da pericardite é comum em crianças e pode ser evidente como alterações inespecíficas no segmento ST em todas as derivações precordiais.

Avaliação laboratorial

Os biomarcadores cardíacos devem ser solicitados imediatamente em qualquer paciente com suspeita de miocardite. Os níveis de creatina quinase e creatina quinase MB estão, com frequência, levemente elevados. Foi comprovado que os níveis de troponina (I ou T) constituem um indicador mais confiável de dano miocárdico, inclusive em crianças.[15][16]

O nível sérico de peptídeo natriurético do tipo B pode ser útil na distinção entre dispneia de etiologias cardíacas primárias e pulmonares primárias quando o exame físico e investigação inicial forem obscuros ou inespecíficos. Ele está elevado na miocardite em resposta à distensão ventricular, como ocorre na insuficiência cardíaca congestiva (ICC).[57]

Ecocardiografia bidimensional

Esse teste deve ser solicitado em todos os pacientes com suspeita de miocardite.[15][16][56]​​ A miocardite pode causar anomalias da contratilidade, disfunções sistólica e diastólica e dilatação globais e regionais do ventrículo esquerdo.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Ecocardiografia transtorácica em plano apical de 4 câmaras em paciente com miocardite. O ventrículo direito está dilatado com hipocinesia. Ocorre a presença de regurgitação tricúspide com redução no gradiente do Doppler de onda contínua, indicando insuficiência ventricular direitaDe: Rasmussen TB, Dalager S, Andersen NH, et al. BMJ Case Reports 2009; doi:10.1136/bcr.09.2008.0997 [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@225bb7d[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Ecocardiografia em plano apical de 4 câmaras em um paciente apresentando miocardite, mostrando um ventrículo esquerdo levemente dilatado com contraste espontâneo ao ultrassom indicando grave comprometimento da função sistólica ventricular esquerdaDe: Rasmussen TB, Dalager S, Andersen NH, et al. BMJ Case Reports 2009; doi:10.1136/bcr.09.2008.0997 [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@24519eba​ Deve-se prestar atenção especial à avaliação de coágulos que possam alterar as terapias e o perfil de risco. Pode ocorrer o desenvolvimento de trombose intracardíaca em decorrência de um estado protrombótico e proinflamatório, bem como sangue estagnado no coração disfuncional.[62]

Biópsia endomiocárdica (BEM)

Os riscos e benefícios potenciais da BEM devem sempre ser cuidadosamente avaliados, particularmente durante a apresentação aguda, pois o risco de arritmia ou de perfuração ventricular é mais alto nesse momento. Não há consenso geral sobre quais pacientes devem ser submetidos à BEM; as recomendações variam e as diretrizes locais devem ser consultadas.[5][55][57][58]​​​[59][63]​​​[64]​​​

Uma declaração da AHA sobre cardiomiopatias dilatadas recomenda a biópsia "para os pacientes com suspeita clínica de miocardite aguda inexplicada que exigirem suporte inotrópico ou assistência circulatória mecânica e para aqueles com bloqueio atrioventricular de segundo grau Mobitz tipo 2 ou acima, taquicardia ventricular sintomática ou sustentada, ou falha em responder a um tratamento clínico baseado em diretrizes dentro de 1 a 2 semanas".[55] As diretrizes de 2022 sobre insuficiência cardíaca (IC) da AHA/American College of Cardiology/Heart Failure Society of America (HFSA) declaram que "a biópsia endomiocárdica pode ser vantajosa para os pacientes com insuficiência cardíaca, para quem um diagnóstico histológico, como miocardite, pode influenciar as decisões de tratamento".​[57]​ Uma declaração conjunta da Heart Failure Association of European Society of Cardiology (ESC), HFSA e Japanese HF Society recomenda a BEM "nos pacientes com miocardite fulminante/aguda apresentando choque cardiogênico ou IC aguda e disfunção ventricular esquerda (VE), com ou sem arritmias ventriculares e/ou anomalias de condução malignas". Elas também recomendam considerar a BEM em “pacientes hemodinamicamente estáveis com sintomas clínicos e critérios diagnóstico (alterações eletrocardiográficas, níveis elevados de troponina e achados de imagem) sugestivos de miocardite, na ausência de doença arterial coronariana significativa”.[59]

[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Achados histológicos em um paciente com miocardite de células gigantes. A: necrose miocárdica grave e substituição fibrótica dos cardiomiócitos com tecido de granulação e fibrose está presente em uma seção da parede ventricular esquerda anterolateral; B: uma borda demarcada nítida entre o miocárdio vital e necrótico é vista, confirmada por coloração imuno-histoquímica adicional para mioglobina; C: na borda inflamatória, células consistindo de células gigantes multinucleadas proeminentes, macrófagos, linfócitos e granulócitos eosinofílicos são vistas em estreita proximidade com o miocárdio vital; D: coloração imuno-histoquímica para o complemento 4d é positiva em todos os vasos, sugestiva de ativação da cascata do complementoDe: Rasmussen TB, Dalager S, Andersen NH, et al. BMJ Case Reports 2009; doi:10.1136/bcr.09.2008.0997 [Citation ends].com.bmj.content.model.Caption@79625c7d

Em crianças, as diretrizes da AHA continuam considerando a biópsia como teste de referência para o diagnóstico de miocardite.[15] É importante observar que, com a imuno-histoquímica, a capacidade de avaliar as células inflamatórias aumentou muito. Além disso, a biópsia pode ser usada para reação em cadeia da polimerase viral, para diagnosticar miocardite viral com especificidade e para avaliar a lesão mediada imunologicamente e os marcadores potencialmente inflamatórios em nível molecular.[65]

Ressonância nuclear magnética (RNM) cardíaca

A RNM cardíaca é uma ferramenta importante na avaliação de suspeita de miocardite, principalmente ao se tentar distinguir a miocardite aguda do IAM.[16][56][60] Em alguns casos, os achados da RNM cardíaca também podem ser úteis na determinação da etiologia da miocardite.[66]

Os critérios de consenso de Lake Louise foram atualizados em 2018 para propor que a presença de achados em T2 e T1 fornece uma evidência forte de inflamação miocárdica.[67]

Em crianças, o principal objetivo da RNM cardíaca é identificar a lesão do miocárdio e diferenciar a miocardite aguda das cardiomiopatias não inflamatórias.[15]

Outros testes

  • Angiografia coronariana: esse teste deve ser realizado quando os sintomas manifestos e os achados forem indistinguíveis das síndromes coronarianas agudas.

  • FDG PET-CT: ajuda a diagnosticar miocardite ao fornecer informações metabólicas de inflamação como um aumento da captação de FDG. O papel da PET-CT com 18F-FDG é útil na miocardite crônica, em que a RNMC não tem a mesma precisão que na miocardite aguda.[68]

  • BEM orientada por RNM: esta é uma nova tecnologia promissora que parece aumentar significativamente a sensibilidade da BEM no diagnóstico de miocardite.[69] Essa tecnologia ainda está em fase de desenvolvimento, precisando de validação em estudos maiores.

O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal