Abordagem
Mais de 99% dos pacientes com doença de Chagas continuam não diagnosticados nos EUA e na América Latina.[127] A avaliação da doença de Chagas suspeitada ou confirmada deve incluir uma história médica completa (incluindo a identificação de fatores de risco para exposição ao vetor e ao parasita em cenários endêmicos e não endêmicos), uma avaliação total dos sistemas orgânicos com ênfase nos sinais característicos da doença de Chagas, testagem sorológica e, em alguns casos, avaliação parasitológica. Um ECG de 12 derivações com um traçado eletrocardiográfico de 30 cm em II é necessário em todos os pacientes, podendo ainda ser realizados outros exames (por exemplo, ecocardiografia, monitoramento ambulatorial de 24 horas do ECG, exames radiográficos com bário do esôfago e cólon), caso necessários com base nos sintomas ou sinais. Não são recomendados exames diagnósticos histológicos ou biópsia; a histologia somente é realizada na autópsia dos casos fatais.
A doença de Chagas é uma doença de notificação em alguns países.
História
A avaliação criteriosa da história é útil na identificação de possíveis fatores de risco para a infecção. Os fatores de risco incluem a exposição a espécies de Triatomas e a presença de reservatórios infectados; viagens ou domicílio em áreas rurais de regiões endêmicas (recentemente ou no passado); desmatamento; moradias precárias e condição socioeconômica baixa, ingestão oral de alimentos possivelmente contaminados; transfusão de sangue possivelmente infectado; transplante de órgão de doador infectado; exposição acidental a material infectado (cirúrgico ou laboratorial); doença de Chagas durante a gestação (transmissão vertical); e moradia em áreas de risco nos EUA. A presença da doença de Chagas em outras pessoas da família também é um forte indicador. A maioria dos adultos com infecção pelo Trypanosoma cruzi não está ciente do diagnóstico e, raramente, apresenta uma história compatível com doença de Chagas na fase aguda em anos anteriores.[128]
A doença de Chagas é uma doença heterogênea com quadro clínico muito variável. Aproximadamente 60% a 70% das pessoas infectadas permanecem assintomáticas durante toda a vida.[2] A doença tem duas fases: aguda e crônica. Geralmente, a fase aguda dura de 3 a 8 semanas (até 12 semanas em alguns casos). Os pacientes podem estar assintomáticos, apresentar sintomas leves, ou ainda uma síndrome febril inespecífica. Os sintomas da fase aguda podem incluir fadiga, diarreia, cefaleia, vômitos, mialgia, irritabilidade (crianças) e anorexia; estes podem ser mais graves após infecção por transmissão oral ou em pacientes imunossuprimidos. Após a fase aguda, a maioria dos pacientes desenvolve uma forma crônica indeterminada da doença, na qual não apresentam sinais ou sintomas. A doença em fase crônica se desenvolve se a fase aguda não for diagnosticada ou tratada, embora os sintomas possam não ocorrer até décadas depois.[13]
Os pacientes com manifestações de miocardite aguda podem apresentar sintomas como tosse, dispneia e dor torácica atípica. Aqueles que tiverem ingerido alimentos ou bebidas contaminados podem apresentar sintomas que incluem hematêmese, dor abdominal epigástrica, melena e hematoquezia. A morbidade causada pela fase aguda da doença de Chagas é mais acentuada nas crianças que nos adultos.
Na fase crônica da doença de Chagas, as formas indeterminadas não apresentam sinais ou sintomas consistentes com problemas cardíacos ou digestórios. Além disso, os ECGs e exames radiológicos do coração, esôfago e intestino mostram resultados normais. As manifestações gastrointestinais e cardíacas da doença crônica geralmente se tornam aparentes anos ou décadas após a infecção, ocorrendo quase que exclusivamente nos adultos.[26][129][130] No entanto, é raro que os pacientes evoluam diretamente da infecção aguda para a forma cardíaca crônica.
Os pacientes com formas cardíacas da doença na fase crônica podem apresentar sintomas que incluem palpitações, síncope, pré-síncope, tontura e até mesmo morte súbita. A cardiomiopatia pode causar sintomas de insuficiência cardíaca congestiva (por exemplo, dispneia, tolerância reduzida ao esforço físico e edema periférico). Os fenômenos tromboembólicos podem se apresentar na forma de acidente vascular cerebral (AVC) ou embolia pulmonar devido a êmbolos de um trombo intracardíaco.
Os pacientes com formas gastrointestinais da doença crônica podem apresentar sintomas de esofagopatia (por exemplo, disfagia, regurgitação, aspiração, odinofagia e desconforto subesternal) e colopatia (por exemplo, constipação prolongada e dor abdominal). Os casos avançados de doença gastrointestinal podem se apresentar com perda de peso, dor abdominal aguda e evidências de complicações (por exemplo, fecaloma, obstrução intestinal e volvo); esses pacientes podem também necessitar de avaliação ou tratamento cirúrgico. A dilatação gástrica (com alterações da motilidade e da secreção gástricas) é uma manifestação relativamente rara.
As convulsões e tremores podem ocorrer em pacientes com meningoencefalite (doença aguda ou reativação). O megaureter (com recorrência de infecções do trato urinário, dorsalgia, náuseas ou vômitos) é uma manifestação relativamente rara.
Exame físico
O exame dos pacientes com doença na fase aguda pode revelar febre prolongada, erupção cutânea e inchaço ao redor do local de inoculação, esplenomegalia, hepatomegalia e/ou linfonodos aumentados. Pode haver história de uma porta de entrada óbvia (por exemplo, inoculação, chagoma, sinal de Romaña) em um pequeno número de casos, ou então a porta de entrada pode ser desconhecida. Chagoma (abscesso da pele por T cruzi) e sinal de Romaña (conjuntivite unilateral e inchaço indolor das pálpebras superior e inferior) são patognomônicos, mas ocorrem em uma minoria dos pacientes, predominantemente em crianças.[2] Pacientes com miocardite aguda podem apresentar taquicardia, hipotensão, cardiomegalia e/ou sinais de pericardite. Pode haver presença de icterícia em pacientes que tenham ingerido alimentos ou bebidas contaminados.
Em geral, o exame físico de pacientes com formas indeterminadas da doença na fase crônica não revela quaisquer sinais específicos. Pacientes com formas cardíacas de doença crônica podem apresentar sinais de insuficiência cardíaca congestiva (estase jugular, cardiomegalia, estertores pulmonares, derrame pleural ou edema) ou evidências de fenômenos tromboembólicos (por exemplo, sinais sugestivos de AVC).[4][14] As formas gastrointestinais de doença crônica podem revelar evidências de complicações gastrointestinais (por exemplo, dor à descompressão brusca abdominal, que é um sinal de irritação peritoneal).
Pacientes com meningoencefalite (aguda ou reativada) podem apresentar sinais clínicos específicos de irritação meníngea (inflação meníngea predominante, sinal de Kernig, sinal de Brudzinski, rigidez da nuca ou rigidez espinhal) ou sinais clínicos de lesões de massa cerebral (alterações no estado mental, convulsões ou anormalidades focais motoras ou sensoriais).
Investigações laboratoriais em geral
O hemograma completo e os testes da função hepática (TFHs) são inespecíficos, mas são importantes para o perfil basal, bem como para monitorar a gravidade da doença na fase aguda e os efeitos adversos devidos à terapia antiparasitária. O hemograma completo é indicado para identificação da leucopenia ou da leucocitose (leve ou moderada), com um desvio à esquerda. Pode ser observada linfocitose, porém os níveis de linfócitos também podem estar normais ou baixos. Também são observadas anemia hipocrômica e plaquetopenia. Resultados anormais nos TFHs na doença de Chagas aguda são sugestivos de lesões hepáticas, especialmente ante a suspeita de ingestão de alimentos ou bebidas contaminados.
Os testes de coagulação são importantes nos casos de insuficiência hepática ou manifestações hemorrágicas. Recomenda-se realizar um teste de gravidez antes do tratamento específico de pacientes do sexo feminino. Havendo evidências de comprometimento da função urinária e sangramento, o exame de sedimentação da urina é importante para monitorar o tratamento. A punção lombar com análise de líquido cefalorraquidiano (LCR) é necessária nos casos de comprometimento neurológico.
Avaliações parasitológica e sorológica
O diagnóstico pode ser confirmado pela avaliação parasitológica (recomendada para doença na fase aguda e reativação) ou por avaliação sorológica (recomendada para doença na fase crônica).[13][34][131][132][133][134] O teste diagnóstico para doença de Chagas não está amplamente disponível em alguns países.
Avaliação parasitológica
Os métodos diretos se baseiam em uma busca pelo parasita no sangue, LCR ou tecidos (por exemplo, teste fresco direto, esfregaço corado). Os métodos indiretos dependem do crescimento do parasita na cultura (hemocultura) para avaliar o ciclo de vida no vetor após um repasto sanguíneo no paciente (xenodiagnóstico). A sensibilidade depende do nível da parasitemia. Pode-se usar o diagnóstico molecular (por exemplo, reação em cadeia da polimerase), quando disponível.
Fase aguda: recomenda-se o exame direto do sangue por microscopia de preparações frescas de sangue anticoagulado. Os tripomastigotas são transparentes, sendo geralmente detectados pelo movimento correspondente dos eritrócitos. Também são utilizados métodos de concentração parasitária (por exemplo, teste de Strout, teste Quantitative Buffy Coat [QBC] e micro-hematócrito) para evidências de formas tripomastigotas. Esfregaços corados de gota estendida e espessa também podem ser examinados para fins diagnósticos; no entanto, esses métodos apresentam sensibilidade mais baixa que outros métodos microscópicos.[13][24] A reação em cadeia da polimerase também é um teste de alta sensibilidade em casos de infecção aguda e pode indicar o aumento da carga parasitária antes que os parasitas possam ser detectados por microscopia.[2]
Fase crônica: embora a avaliação parasitológica não seja a primeira opção para o diagnóstico da doença na fase crônica, o diagnóstico pode ser confirmado por cultura de LCR ou sangue (baixa sensitividade, alta especificidade) ou por xenodiagnóstico (baixa sensitividade, alta especificidade). Uma metanálise sugeriu que a reação em cadeia da polimerase apresenta sensibilidade relativamente baixa, apesar de ter uma especificidade muito elevada na doença crônica; portanto, não é recomendada.[134]
Fase de reativação: confirmada por exame direto do sangue ou do LCR. Isso envolve esfregaço de gota espessa e aplicação de métodos de concentração parasitária (por exemplo, teste de Strout, QBC ou micro-hematócrito) para evidenciação de formas tripomastigotas. A reação em cadeia da polimerase em tempo real também pode ser usada para a detecção precoce da reativação nos pacientes imunocomprometidos. Os métodos parasitológicos indiretos e a reação em cadeia da polimerase qualitativa não são válidos para confirmar a reativação.[2]
Avaliação sorológica
Teste de primeira escolha para a fase crônica da doença. Baseia-se na identificação de anticorpos IgM (fase aguda) e anticorpos IgG (fase crônica) para o T. cruzi. As preparações de IgM raramente estão disponíveis, mesmo nos países endêmicos.
Os testes incluem ensaio de imunoadsorção enzimática (ELISA), teste de anticorpo imunofluorescente indireto, ensaio de radioimunoprecipitação, hemaglutinação indireta e quimioluminescência, os quais usam extratos brutos ou semipurificados das formas epimastigotas do T. cruzi Observa-se uma variação considerável na reprodutibilidade e na confiabilidade dos resultados. O desempenho dos testes ELISA é considerado bom.[134]
Na fase crônica da doença, pelo menos dois testes sorológicos com base em antígenos ou técnicas diferentes são usados para aumentar a precisão do diagnóstico. Quando os resultados forem divergentes, pode-se utilizar um terceiro ensaio para confirmação ou refutação do diagnóstico, podendo, alternativamente, ser necessário repetir a amostragem.
Exames de fisiologia cardíaca
A avaliação da doença cardíaca é essencial em todos os pacientes com infecção por T. cruzi confirmada para detectar a doença cardíaca em estágio inicial, além do monitoramento contínuo de rotina. Os pacientes com doença crônica ou aguda precisam de uma avaliação cardíaca por ECG. Os indicadores de disfunção ventricular, como taquicardia ventricular não sustentada ou sustentada ao ECG em repouso ou em monitoramento ambulatorial, disfunção grave do nó sinusal e bloqueio atrioventricular de grau elevado são os principais preditores de morte súbita.[4][14][135][136][137][138]
Eletrocardiograma de repouso de 12 derivações, com traçado eletrocardiográfico de 30 segundos II
Indicado para pacientes com doença nas fases aguda e crônica na primeira avaliação e depois anualmente.
As alterações cardíacas mais frequentes na fase aguda da doença são similares a outros casos de miocardite aguda e incluem taquicardia sinusal, baixa voltagem do intervalo QRS, prolongamento dos intervalos PR e/ou QT e alterações primárias na onda T. Extrassístoles ventriculares, fibrilação atrial ou bloqueio completo de ramo direito (raro nesta fase) indicam desfecho fatal.
As alterações cardíacas mais frequentes na fase crônica da doença são o bloqueio do ramo direito; bloqueio incompleto do ramo direito; bloqueio fascicular anterior esquerdo; bloqueio atrioventricular de primeiro grau; bloqueio atrioventricular de segundo grau (Mobitz do tipo I ou II); bloqueio atrioventricular completo; bradicardia; disfunção do nó sinusal; extrassístoles ventriculares (muitas vezes frequente e multifocal) ou taquicardia ventricular emparelhada (não sustentada ou sustentada). Menos frequente, porém clinicamente significativas quando presentes, são a fibrilação ou "flutter" atrial, o bloqueio do ramo esquerdo, a baixa voltagem do intervalo QRS, as alterações primárias da repolarização e as ondas Q.
ECG ambulatorial de 24 horas
Indicado nos pacientes com sintomas ou alterações ao ECG compatíveis com a forma de cardiopatia da doença de Chagas.
Deve ser monitorado para detectar arritmias.
Teste ergométrico
Indicado nos pacientes com sintomas ou alterações ao ECG compatíveis com a forma de cardiopatia da doença de Chagas.
Necessário para avaliação e identificação de arritmias induzidas por esforço e para avaliação da capacidade funcional e da resposta cronotrópica.
Exames por imagem
A radiografia torácica é indicada em todos os pacientes para definir a condição da linha basal e avaliar as complicações cardíacas ou pulmonares. Este exame pode demonstrar estágios diferentes de cardiomegalia e derrame pleural (e outros sinais congestivos) em casos de insuficiência cardíaca. A ecocardiografia é indicada em pacientes com evidências clínicas, radiológicas ou ecocardiográficas de distúrbio cardíaco funcional. Esse exame permite a avaliação da função bioventricular, contratilidade da parede e estrutura.[4][14][139] A ressonância nuclear magnética (RNM) cardíaca pode ser realizada em pacientes selecionados com cardiomiopatia de Chagas para se avaliar a extensão da fibrose. Os testes de medicina nuclear são uma opção para avaliar a função biventricular quando a ecocardiografia não for adequada. Pode ser necessário realizar um cateterismo cardíaco e uma angiografia coronária nos pacientes com sintomas incapacitantes, similares à angina, para descartar uma doença arterial coronariana concomitante. O cateterismo cardíaco direito é necessário nos pacientes com insuficiência cardíaca avançada para avaliar a viabilidade do transplante cardíaco.[2]
Os exames por enema ou contraste de bário (esofagografia ou colonografia) são indicados nos pacientes com sintomas gastrointestinais para os diagnósticos de acalasia ou de megacólon. A endoscopia digestiva alta não é indicada para o diagnóstico do megaesôfago; no entanto, os pacientes com motilidade esofágica comprometida têm maior risco de apresentarem esofagite de refluxo e carcinoma esofágico, podendo ser necessário realizar o rastreamento dessas afecções, especialmente se tiverem ocorrido alterações nos sintomas.[107] A manometria esofágica é empregada para avaliar a extensão e a intensidade do comprometimento do peristaltismo.
A tomografia computadorizada ou RNM do crânio são indicadas em casos de suspeita de meningoencefalite e em pacientes com doença aguda ou em fase de reativação e sintomas neurológicos. Também podem ser indicadas para pacientes com suspeita de AVC cardioembólico associado à doença em fase crônica com comprometimento cardíaco.
Novas investigações
Os testes de imunocromatografia para a doença de Chagas, como os testes diagnósticos rápidos ou ensaios de fluxo lateral, são novas investigações que foram desenvolvidas e têm sido utilizadas para o diagnóstico da doença de Chagas.[140]
Os testes diagnósticos rápidos foram desenvolvidos como uma alternativa fácil de usar aos testes convencionais. Embora tenham alta validade para o diagnóstico da doença de Chagas crônica, eles ainda não são utilizados para esse fim.[141] A utilização dos testes diagnósticos rápidos está limitada ao rastreamento diagnóstico em campo. Se o teste for positivo, é necessária a confirmação com outros testes sorológicos.
Estão disponíveis kits comerciais de reação em cadeia da polimerase para a detecção e quantificação do T. cruzi em amostras de sangue.[142] Os kits poderão se tornar um teste padrão para o diagnóstico molecular nos países endêmicos no futuro.
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