Etiologia
A febre familiar do Mediterrâneo (FFM) é uma doença hereditária autossômica recessiva decorrente de mutações no gene (MEFV) da febre do Mediterrâneo (mapeada no cromossomo 16p13.3).[18][19] A maioria das mutações localiza-se no exon 10 e, até o momento, foram identificadas mais de 280 variantes de sequência. The registry of hereditary auto-inflammatory disorders mutations Opens in new window
A importância da maior parte dessas variantes de sequência ainda é desconhecida, embora esteja bem estabelecida a associação entre a FFM e mutações, tais como M694V, M694I, M680I e V726A, uma vez que estas mutações estão presentes em mais de dois terços dos casos.[20][21] Há evidências indicativas de que pacientes homozigotos para mutações M694V têm maior risco de início em idade precoce, artrite, ataques mais frequentes, eritema erisipeloide e amiloidose.[2] No entanto, há uma controvérsia quanto ao papel da substituição de aminoácidos em E148Q, na qual a glutamina (Q) substitui o ácido glutâmico (E). Inicialmente, essa variação na sequência foi descrita como uma mutação causadora de doença com baixa penetrância e sintomas leves.[22][23][24] Estudos subsequentes sugerem que pode não ser mais do que um polimorfismo benigno com alta frequência na população geral (até 30% em algumas populações asiáticas).[25][26] As diretrizes de 2015 do Single Hub and Access point for pediatric Rheumatology in Europe (SHARE) concluem que a variante E148Q é comum, embora de significância patogênica desconhecida, e como única variante do MEFV não oferece suporte ao diagnóstico de FFM.[26] No entanto, o debate ainda existe, e alguns estudos relatam uma possível associação entre o genótipo E148Q homozigoto e a amiloidose.[27][28][29]
Testes genéticos também demonstraram relações ancestrais entre cromossomos portadores que estão separados há séculos.[30] Em alguns casos, a FFM poderia continuar a afetar várias gerações. Isso se deve às altas taxas de portadores em populações de alto risco, o que causa herança pseudodominante (um progenitor com a doença + um progenitor portador: metade dos filhos desenvolve a doença). Herança dominante verdadeira também foi descrita em algumas famílias, mas ainda é muito rara.[31][32][33]
Outras considerações:
Alguns pacientes com diagnóstico clínico de FFM não apresentam nenhuma ou apresentam apenas uma mutação no gene MEFV.[34][35][36][37] Vários motivos científicos e clínicos podem explicar a situação, incluindo a possibilidade de um segundo gene autoinflamatório (ainda não descoberto) que mimetizaria o da FFM.[38] Na verdade, as principais características clínicas (por exemplo, febre recorrente na faixa etária pediátrica) são bastante inespecíficas, e febre e polisserosite também são comuns em outras síndromes hereditárias de febre recorrente. Por isso, nem sempre é possível excluir um diagnóstico clínico incorreto. Na verdade, a proporção de pacientes com FFM sem as mutações genéticas necessárias é relativamente baixa em populações de origem mediterrânea (20% a 25%), enquanto pode ser muito alta em outras populações (até 85%). Em algumas raras famílias, uma transmissão dominante verdadeira de certas mutações graves poderia ser a explicação, enquanto em outras famílias alelos complexos poderiam causar uma forma mais grave da doença. Um estudo europeu defendeu a ideia de dosagem gênica.[39] Mas outros fatores, como mecanismos moleculares ainda desconhecidos (isto é, mutações não exônicas de regulação de transcrição 1), também são hipóteses possíveis para o desenvolvimento de doença clínica em pacientes sem nenhuma ou com apenas uma mutação no gene MEFV.
Fatores ambientais exercem um papel importante no desencadeamento de ataques de FFM, especialmente a presença de estresse, doença viral na primeira infância, esforço físico extremo ou mesmo medicamentos como metaraminol e cisplatina.[40][41]
Fisiopatologia
Em 1992, o gene associado à febre familiar do Mediterrâneo (FFM) foi mapeado no braço curto do cromossomo 16 e foi clonado em 1997.[19][42] Ele foi chamado de MEFV para "MEditerranean FeVer" (febre do Mediterrâneo). A transcrição completa de 3.7 Kb codifica uma proteína chamada pirina ou marenostrina, composta de 781 aminoácidos. O MEFV é um gene expresso especificamente em células mieloides, que exercem funções importantes na imunidade inata. A descoberta do MEFV foi muito útil para entender os mecanismos da FFM.
Vários domínios da proteína são notáveis: o domínio da pirina é um domínio específico de 90 aminoácidos localizados na região N-terminal e define uma nova classe de proteínas da chamada família das pirinas. Um segundo domínio chamado B30.2 ou SPRY está localizado na região C-terminal da proteína e contém as mutações mais frequentes associadas à FFM.
Foram estabelecidos alguns dados patogênicos relacionados às funções desses domínios. Primeiro, demonstrou-se que a marenostrina ou pirina pode interagir com a proteína puntiforme associada à apoptose (ASC); a ASC é mediadora tanto da ativação do ligante do receptor do fator nuclear kappa B como da pró-caspase-1 com o processamento e a secreção associados de interleucina 1 beta (IL-1 beta) e apoptose.[43] O segundo ponto é resultado da descoberta do inflamossomo, uma plataforma multimolecular ativada na infecção celular ou no estresse, que desencadeia a maturação de citocinas pró-inflamatórias para participarem da defesa imunológica inata. O inflamossomo intermedeia a ativação de pró-caspase-1, que por fim causa a ativação da IL-1 beta. Algumas referências bibliográficas sugerem que a marenostrina ou pirina modula o inflamossomo interagindo com os domínios da pirina e SPRY.[44][45][46] Também foi demonstrado que a pirina medeia a ativação do inflamossoma caspase-1 em resposta à glicosilação Rho da citotoxina TcdB, um importante fator de virulência de Clostridium difficile, funcionando como um sensor imune específico para modificações bacterianas de GTPases Rho.[47]
Classificação
Critérios de classificação da febre familiar do Mediterrâneo do Eurofever Registry e da Paediatric Rheumatology International Trials Organisation[5]
Presença de genótipo confirmatório de febre do Mediterrâneo (MEFV) (variantes patogênicas ou provavelmente patogênicas [heterozigoto nas doenças autossômicas dominantes, homozigoto ou em heterozigoto transcomposto (ou bialélico) nas doenças autossômicas recessivas]) e pelo menos um dos seguintes critérios:
Duração dos episódios 1-3 dias
Artrite
Dor torácica
Dor abdominal.
Ou presença de genótipo MEFV não confirmatório em heterozigoto transcomposto para uma variante de MEFV patogênica e uma variante de significância incerta [VSI] ou VSI bialélica, ou heterozigoto para uma variante de MEFV patogênica) e, pelo menos, dois dos seguintes itens:
Duração dos episódios 1-3 dias
Artrite
Dor torácica
Dor abdominal.
Esses critérios de classificação visam à identificação precisa de doenças para estudos e não devem ser usados para fins diagnósticos.[5]
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