Abordagem
A incontinência fecal é geralmente multifatorial, e as causas reversíveis devem ser abordadas primeiramente. O manejo inicial pode ser realizado em um ambiente de atenção primária, mas se não for bem-sucedido e o paciente desejar seguir um tratamento ativo, é recomendado o encaminhamento a um serviço especializado para avaliação mais aprofundada e tratamento. Um esquema de tratamento ideal pode ser uma combinação complexa de várias terapias cirúrgicas e não cirúrgicas.
O tratamento das condições contribuintes pode ajudar a aliviar os sintomas e deve ser considerado antes de outros tratamentos especializados. Eles incluem compressão do disco intervertebral (síndrome da cauda equina); causas tratáveis de diarreia (por exemplo, infecção, doença inflamatória intestinal); e problemas anorretais, como prolapso retal e hemorroidas de terceiro grau.[42][43]
Tratamento em serviços de atenção primária: dieta, intervenção do hábito intestinal, estratégias de enfrentamento
O objetivo da intervenção alimentar é promover a consistência ideal das fezes e esvaziamento intestinal previsível. Ao considerar mudanças alimentares é fundamental garantir que a ingestão de nutrientes em geral seja balanceada, especialmente em idosos. Um diário de alimentação é útil, com modificação de um alimento por vez, na tentativa de identificar potenciais colaboradores dos sintomas. Alimentos específicos que podem contribuir são ameixas, ruibarbo, sucos de frutas, alcaçuz e figos. Os adoçantes artificiais (por exemplo, sorbitol) também têm propriedades laxantes.[26] Bebidas alcoólicas, cafeína e alguns vegetais (feijão, brócolis, couve-flor e repolho) estão frequentemente associados a evacuação diarreica. Um aumento no consumo de fibra alimentar solúvel (por exemplo, suplementos de ispágula) pode melhorar a consistência das fezes por absorção de água intraluminal.[44][45] O aumento gradual da ingestão de fibras ao longo de alguns dias irá resultar em menor distensão abdominal e desconforto. Embora não haja evidências sobre sua efetividade, a opinião de especialistas sugere as seguintes intervenções no hábito intestinal:
Incentive o movimento intestinal após uma refeição (usando o reflexo gastrocólico).
Garanta instalações sanitárias facilmente acessíveis, confortáveis e que ofereçam privacidade.
Incentive a posição sentada ou de cócoras para otimizar a evacuação e evitar o esforço.
Durante a avaliação inicial e o manejo da incontinência fecal, os pacientes devem ser orientados sobre mecanismos de enfrentamento. Isso inclui apoio emocional e psicológico para uma condição considerada desmoralizante e socialmente não aceitável. Além disso, devem ser fornecidas informações sobre o uso de produtos para continência como:
Absorventes higiênicos externos descartáveis: não se constatou nenhuma vantagem em nenhum tipo específico de absorvente descartável externo para a incontinência fecal.[46]
Tampão anal: se tolerado, pode ser útil na prevenção de incontinência.[47]
Orientação sobre cuidado da pele.
Produtos para o controle do odor e manejo na lavagem das roupas.
Luvas descartáveis.
Forneça aos pacientes detalhes de contato para grupos de apoio relevantes. Esses grupos podem orientar sobre produtos de continência e estratégias de enfrentamento.
Incontinência associada a evacuação diarreica
Se fatores alimentares, uso de laxantes e infecção já foram avaliados, podem ser oferecidos agentes antidiarreicos. Agentes antidiarreicos são melhor prescritos com regularidade. Medicamentos comumente usados incluem a loperamida e a codeína. Eles agem na diminuição da motilidade intestinal e de secreções. Além disso, a loperamida tem mostrado causar efeito direto na potencialização do esfíncter anal.[48] A codeína é geralmente prescrita se a loperamida não for tolerada. A amitriptilina é um antidepressivo tricíclico que, em doses baixas, demonstrou melhorar a incontinência fecal em um estudo aberto.[49] Ela pode agir na redução da atividade motora retal. A duração do tratamento pode ser indefinida, mas parece ser segura em longo prazo a uma baixa dosagem.[50] O difenoxilato/atropina é uma alternativa se os medicamentos preferidos não forem eficazes. Novamente, a duração do tratamento pode ser indefinida, mas a posologia deve ser reduzida após um controle inicial da doença para diminuir os efeitos colaterais.
Constipação e transbordamento
Se houver suspeita de que a constipação e a impactação fecal tenham atuação relevante, enemas e supositórios podem ajudar a promover um esvaziamento mais completo do intestino e a minimizar o vazamento pós-defecação.[51] Tal programa pode beneficiar especialmente aqueles com constipação grave e com incontinência por transbordamento.[52] Inicialmente são recomendadas preparações retais e os pacientes podem precisar de tratamento regular por vários dias para haver depuração. Os laxantes por via oral são reservados aos pacientes para os quais as preparações retais não foram bem-sucedidas.
A irrigação retrógrada (via reto) ou anterógrada (geralmente por via de apendicostomia) pode ser considerada em determinadas pessoas com constipação ou alteração da motilidade colônica associada à incontinência. A irrigação anterógrada exige a formação cirúrgica de uma apendicostomia que permita a irrigação direta do lúmen intestinal através de um estoma. A irrigação permite a limpeza colônica efetiva e eficaz e minimiza a perda involuntária pós-defecação. A irrigação anterógrada pode ser complexa e ineficaz em todos os pacientes.[53]
Equipamentos modernos permitem a irrigação retrógrada rápida e fácil, embora o procedimento requeira uma certa destreza se usado sem orientação. O National Institute for Health and Care Excellence (NICE) do Reino Unido recomenda a irrigação retrógrada, se não for possível obter a incontinência intestinal por medicação, ou mudanças de dieta e fisioterapia.[43]
Dano na medula espinhal ou distúrbio intestinal neurogênico
Se as medidas iniciais conservadoras não forem suficientes, é recomendado o encaminhamento a um programa de manejo intestinal neurológico. O objetivo é estabelecer uma rotina previsível de evacuação para evitar tanto a incontinência quanto a constipação. Para isso, pode-se considerar a estimulação anorretal de toque ou a evacuação manual. A irrigação anterógrada melhora a continência fecal e a qualidade de vida em pessoas com lesão na medula espinhal.[54]
A estimulação do nervo sacral (ENS) envolve a implantação de um fio estimulador através do forame sacral (geralmente S3) para estimular o plexo do nervo sacral diretamente, usando impulsos elétricos de baixa amplitude.[55][56][57] Embora não esteja claro como a estimulação funciona, ela não é necessariamente uma resposta motora e muito provavelmente é um efeito sensorial e/ou central. O dispositivo pode requerer reprogramação, e uma perda na eficácia ao longo do tempo pode ser frequentemente resolvida pela individualização dos parâmetros programados.[58] O paciente não precisa sentir a estimulação; estimulação subsensorial é igualmente efetiva.[59] Há poucas complicações e elas geralmente são leves. Os dados de uma revisão sistemática sugerem que a frequência de eventos adversos seja de 13%.[60] A complicação mais importante é infecção (2%), a qual pode exigir a remoção do dispositivo.
O procedimento pode ser considerado para os pacientes com incontinência fecal com complexo esfincteriano intacto (incontinência decorrente de denervação ou atrofia). O procedimento também pode ser indicado para pacientes com pequenos defeitos, nos quais a cirurgia do esfíncter é considerada imprópria.[61] Embora a ENS demonstre resultados iniciais promissores com mínima morbidade associada, não há disponibilidade de desfechos clínicos em longo prazo.[61] Geralmente, um sistema temporário é testado por algumas semanas e se for bem-sucedido e aceito pelo paciente, um sistema permanente pode ser colocado em prática.
Se a estimulação do nervo sacral não for bem-sucedida, um neoesfíncter pode ser considerado. Há duas opções: o neoesfíncter pela graciloplastia com eletroestimulação (um esfíncter funcional construído cirurgicamente, usando músculo grácil transportado) ou um aparelho de manguito artificial.[62] Ambas podem melhorar a continência, mas estão associadas à incidência significativa de efeitos adversos e a uma alta taxa de remoção.[62][63][64][65]
Assim, deve ser reservado a pacientes altamente sintomáticos, para os quais opções menos invasivas tenham sido malsucedidas ou para aqueles em que a intervenção cirúrgica não seja apropriada (devido a uma grande ruptura do esfíncter, dano neural grave ou doenças congênitas, como atresia anal).[65] Com a técnica de transposição do músculo grácil, aproximadamente um terço dos pacientes desenvolve um grande problema ulceroso envolvendo o períneo, o estimulador e/ou ferida na perna. A falha técnica (deslocamento da bateria/do fio condutor, fratura do fio condutor) também é comum.[62]
A infecção é frequente com o esfíncter intestinal artificial; geralmente é o resultado da erosão do aparelho dentro do reto ou da pele perineal. A remoção ocorre em cerca de um terço dos pacientes.[63] Mesmo que o dispositivo possa ser recuperado, é necessário revisá-lo com frequência devido a mau funcionamento (ruptura do manguito, vazamentos do balão ou da bomba e migração).
Deficiência do esfíncter externo
Se a orientação alimentar, a intervenção no hábito intestinal e as estratégias de enfrentamento não melhorarem os sintomas significativamente ou se o paciente requerer investigações adicionais, torna-se necessário encaminhar o paciente a um especialista. O controle pode incluir estratégias tais como exercícios para o assoalho pélvico, biofeedback e estimulação elétrica.[66] O American College of Obstetricians and Gynecologists recomenda exercícios para o assoalho pélvico com ou sem biofeedback para fortalecer o esfíncter anal e os músculos elevadores do ânus.[27] O objetivo é aumentar a sensação, a coordenação e a força do assoalho pélvico. Os exercícios podem ser autodirecionados, ensinados verbalmente ou por meio de instruções escritas, ou ensinados por meio do uso de equipamentos vaginais ou anais permitindo assim o feedback ao paciente por meio do dispositivo. A eletroestimulação é realizada através do uso de uma sonda anal específica.
O efeito benéfico do biofeedback pode variar. Embora muitos estudos sugiram uma melhora em até 90% dos pacientes, vários ensaios clínicos randomizados e controlados mostraram que tais intervenções não são melhores que o padrão de cuidados.[8][67] Entretanto, o tratamento não causa danos e a opinião de consenso é que uma dessas intervenções deva ser considerada para as pessoas que continuarem apresentando episódios de incontinência fecal após o manejo inicial.
O reparo esfincteriano anterior é adequado aos pacientes com defeito no esfíncter externo e com sintomas que não respondem à terapia não cirúrgica. Defeitos no esfíncter interno, neuropatia do nervo pudendo, defeitos múltiplos e evacuação diarreica podem diminuir o sucesso do reparo esfincteriano anterior. O esfíncter anal externo é reparado ou ajustado por meio de uma pequena incisão anterior. Índices iniciais de sucesso de 70% a 80% são possíveis, mas, geralmente, há uma rápida deterioração, com menos de 45% dos pacientes ainda satisfeitos após 5 a 10 anos.[68][69][70] Apenas 10% terão continência completa após cerca de 5 anos após a operação.[71] Apesar de resultados deficientes em longo prazo, a cirurgia tem poucas complicações graves. A infecção da ferida ocorre em aproximadamente um quarto dos casos, mas geralmente é leve e sem sequelas graves.[72] A ruptura da ferida foi relatada em até 41% dos pacientes. A presença de lesões complexas, como defeito cloacal ou fístula reto-vaginal, aumentou a incidência de ruptura da ferida.[73] O biofeedback adjuvante pode ajudar a manter a melhora ao longo do tempo.[67][68][71][74]
Se houver contraindicação à cirurgia, a ENS é mais uma opção. Há algumas evidências de que, mesmo com um defeito esfincteriano importante, os pacientes parecem responder à ENS sem necessidade de reparar o esfíncter.[8] Se houver ruptura grave do esfíncter e o reparo não for possível, um neoesfíncter pode ser considerado, embora a natureza invasiva da cirurgia e as taxas de complicações consideráveis indiquem que esse tratamento deva ser reservado a pacientes altamente sintomáticos, para os quais opções menos invasivas não são adequadas ou não foram bem-sucedidas.
Disfunção no esfíncter interno
Se o manejo inicial for malsucedido, o manejo conservador especializado pode ser experimentado, incluindo exercícios para o assoalho pélvico, biofeedback e eletroestimulação.[66] Em pacientes com perda involuntária passiva devido a defeitos isolados no esfíncter interno ou a disfunções no esfíncter, o preenchimento do mesmo pode potencializar a selagem criada por ele e melhorar a continência. Um biomaterial é injetado dentro do espaço interesfincteriano.[75] Vários materiais têm sido utilizados, incluindo gordura autóloga, compostos de colágeno, silicone, teflon, dextranômeros e próteses auto-expansíveis.[76][77][78] É um procedimento seguro cujos efeitos colaterais limitam-se a infecção, erosão e dor (geralmente relacionadas a um local de injeção muito superficial).[79][80] O preenchimento do esfíncter interno pode fornecer uma selagem mais eficaz, podendo ser particularmente útil naqueles pacientes que se queixam de perda involuntária passiva (em geral, decorrente de disfunção no esfíncter interno). No entanto, as evidências quanto à eficácia são limitadas e a maior parte dos ensaios clínicos a respeito dessa intervenção apresentam fraquezas metodológicas.[81][82]
Complexo do esfíncter intacto
O manejo inicial para pacientes com um complexo do esfíncter intacto ou somente uma pequena laceração é o mesmo. Orientação alimentar, intervenção do hábito intestinal e estratégias de enfrentamento são empregadas. Se malsucedidas, o biofeedback e os exercícios para o assoalho pélvico podem ajudar. A estimulação do nervo sacral pode ser benéfica se todas as outras alternativas conservadoras fracassarem. O neoesfíncter desempenha um papel importante no tratamento da incontinência fecal grave se a disfunção do esfíncter é significativa e outras terapias falharam. O antidepressivo tricíclico amitriptilina também tem demonstrado melhorar a incontinência.[49]
Incontinência grave refratária a outros tratamentos
Um estoma (colostomia ou ileostomia) é adequado para a incontinência em estágio terminal se todas as outras terapias falharem ou forem impróprias, ou quando preferido pelo paciente.[26] O procedimento é geralmente eficaz em aliviar os sintomas, mas pode ter um impacto psicológico significativo em relação à imagem corporal. Em geral, ele é reservado aos pacientes nos quais outras opções tiverem falhado. mas pode ser considerado como opção inicial no esquema de tratamento se o paciente preferir, já que permite a retomada da vida normal.[83] O paciente deve receber aconselhamento apropriado e visualização da localização do estoma antes da cirurgia, além de receber suporte adequado em seguida. As complicações comumente incluem queixas cutâneas, prolapso/retração do estoma e hérnia.
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