Abordagem
O tratamento do abscesso intra-abdominal (AIA) é resumido em 2 etapas: controle de foco e terapêutica antimicrobiana efetiva.[27] A fonte geralmente é controlada por drenagem cirúrgica ou percutânea para esvaziar completamente a cavidade do abscesso. O controle de foco adequado, além da terapêutica antimicrobiana precoce adequada e eficaz, geralmente é suficiente.
Quando o vazamento é grande e, por isso, não contido, é necessário tratamento cirúrgico para limpar a cavidade abdominal e estabelecer o controle de foco, geralmente reparando a perfuração ou fazendo uma derivação do intestino próximo ao vazamento. Um controle de foco inadequado no momento da cirurgia inicial está associado a uma mortalidade elevada.[28]
Avaliação do risco de desfechos adversos e fracasso do tratamento
Avalie os fatores fisiológicos e fenotípicos:
Sinais de sepse: os pacientes podem apresentar choque; a sepse também pode ocorrer logo após a drenagem de um AIA. A Surviving Sepsis Campaign produziu diretrizes de tratamento que constituem ainda hoje o padrão mais amplamente aceito.[29] As boas práticas atuais baseiam-se nas evidências de pacotes de cuidados na sepse.[29][30][31][32]
Extremidades etárias
Comorbidades
Extensão da infecção abdominal e adequação do controle do foco
Presença de patógeno resistente ou oportunista.
Classifique os pacientes como risco alto ou baixo para o fracasso do tratamento ou a mortalidade.
Avalie a infecção adquirida na comunidade ou em ambientes de cuidados com a saúde.
Os pacientes com critérios da Surviving Sepsis Campaign para sepse ou choque séptico, e aqueles com pontuação APACHE II igual ou acima de 10, apresentam risco mais alto.
Hospitalização prolongada antes da cirurgia para infecção intra-abdominal.
Pacientes com peritonite difusa.
Pacientes com controle de foco tardio.[2]
Drenagem percutânea
A drenagem percutânea é uma modalidade bem-sucedida na maioria dos casos.[33] Para abscessos simples que não estão associados à suspeita de neoplasia nem a grandes vazamentos anastomóticos, a drenagem percutânea, se possível, poderá ser a terapia de primeira linha. A drenagem percutânea pode ser realizada usando orientação por ultrassonografia ou tomografia computadorizada (TC).[34] Ainda que seja bastante útil onde só existam um ou dois AIAs, a drenagem percutânea é limitada quando a trajetória do abscesso requer contaminação cruzada de uma outra cavidade, como a pleura, ou quando a fonte da contaminação não esteja suficientemente controlada, como em um colapso anastomótico grande.
A drenagem percutânea pode ser usada como parte de um procedimento cirúrgico por estágios, como na diverticulite, doença de Crohn ou apendicite.[35] A taxa de sucesso global dos procedimentos cirúrgicos usando drenagem percutânea por cateter é de 76%, chegando a 94% na apendicite.[36] O abscesso apendicular é geralmente tratado com drenagem percutânea, que é um tratamento satisfatório na maioria dos casos. Com frequência, os abscessos relacionados à doença de Crohn podem ser tratados inicialmente com antibióticos e drenagem percutânea, evitando, assim, cirurgias de emergência e procedimentos de vários estágios. Em casos altamente selecionados, a cirurgia pode ser totalmente evitada.[37]
Em um estudo prospectivo multicêntrico, a origem pancreática do abscesso ou cultura positiva para leveduras foi um preditor negativo de um desfecho percutâneo bem-sucedido, e os abscessos pós-operatórios foram um indicador favorável desse desfecho.[36] Ainda que a drenagem cirúrgica por via aberta pareça ter maior índice de mortalidade, isso provavelmente se deve ao viés da seleção de pacientes.[14] Em uma série ampla de 95 pacientes com 107 abscessos, a drenagem percutânea orientada por imagem foi realizada com ultrassonografia em 71 procedimentos e com orientação por TC em 36 procedimentos.[33] O sucesso técnico imediato foi obtido em 107 de 107 coleções de fluidos com o uso de cateteres de drenagem do tipo "pigtail" 8F a 14F, e não ocorreu nenhuma complicação maior. Em geral, o cateter de drenagem foi deixado no local durante uma média de 14.2 dias. Em 9 dos 107 casos, a drenagem percutânea não conseguiu remitir a coleção de fluidos. Ainda que a drenagem percutânea seja menos invasiva que a cirurgia, esse procedimento tem suas próprias desvantagens e morbidades. Complicações da drenagem percutânea incluem deslocamento ou obstrução do cateter, septicemia pós-procedimento e drenagem insuficiente.[33] Outras complicações podem incluir sangramento e lesão inadvertida de estruturas circundantes.
O cateter poderá ser removido quando os achados clínicos desaparecerem e a drenagem for <10 mL em 24 horas. Antes de remover o cateter, deve-se ter certeza de que a cessação da drenagem não é decorrente do bloqueio do cateter.[38]
Controle de foco cirúrgico
O procedimento cirúrgico depende da causa do AIA.[27]
No caso de perfuração gástrica ou duodenal, o reparo com remendo de Graham e remoção da cobertura e drenagem do abscesso associado deve ser suficiente.
Uma perfuração no intestino delgado pode precisar de reparo primário ou ressecção, acompanhado de anastomose primária ou, às vezes, de ostomia de duplo barril.
A diverticulite pode exigir ressecção do cólon doente e colostomia final (um procedimento de Hartmann) ou anastomose primária, com ou sem derivação de ileostomia.[39] A lavagem laparoscópica com drenagem também foi considerada viável em pacientes com peritonite purulenta, mas é controversa, já que ensaios clínicos apresentaram resultados conflitantes.[40][41][42]
Os vazamentos anastomóticos colônicos podem ser tratados com derivação proximal e drenagem, sem retirada da anastomose.[43] Quando ocorre um vazamento anastomótico, geralmente o quadro clínico dita o curso: um paciente em choque séptico deve ser ressuscitado, depois explorado novamente para determinar se a anastomose que está vazando pode ser retirada, e uma derivação proximal deve ser realizada. Uma única cirurgia pode não ser um controle suficiente da fonte, e uma cirurgia de 2 ou vários estágios pode ser necessária. A presença de instabilidade hemodinâmica pode contraindicar o restabelecimento da continuidade intestinal, e uma segunda laparotomia geralmente é planejada em 24 a 48 horas. O tratamento de feridas com pressão negativa pode ser considerado se o abdome for deixado aberto.[44]
Seleção de terapêutica antimicrobiana
A terapêutica antimicrobiana empírica parenteral precoce é extremamente importante no tratamento do AIA. A terapêutica antimicrobiana adequada é definida como o uso de um antimicrobiano eficaz contra todos os organismos patogênicos isolados a partir do AIA. Em pacientes com sepse ou choque séptico, a antibioticoterapia parenteral empírica com amplo espectro deve ser iniciada imediatamente após a obtenção do diagnóstico, já que o desfecho piora a cada hora de atraso da terapêutica antimicrobiana.[45] Consulte Sepse em adultos (abordagem de tratamento).
Duas metanálises demonstraram redução da mortalidade em curto prazo usando uma infusão de longa duração (off-label) de betalactâmicos após o bolus inicial.[46][47]
Culturas adequadas devem ser obtidas antes de iniciar a antibioticoterapia, mas não devem evitar a administração imediata da terapêutica antimicrobiana.[2][29] Antibióticos devem ser administrados antes da drenagem cirúrgica ou percutânea.
Os patógenos frequentemente isolados nas infecções intra-abdominais são os seguintes.
Bactérias Gram-negativas, como Escherichia coli, Enterobacter, Klebsiella, Proteus ou Pseudomonas.
Bactérias Gram-positivas, como Streptococcus, Staphylococcus aureus ou Enterococcus.
Anaeróbios, como Bacteroides e Clostridium. O microrganismo anaeróbio mais prevalente nas infecções intra-abdominais é o Bacteroides fragilis, que tende a estar presente em um terço a metade de todas essas infecções.
Candida. A incidência de infecções por Candida depende da presença de fatores predisponentes, como imunodeficiência, tratamento antimicrobiano prévio e diálise peritoneal. É mais comum na peritonite terciária (infecção intra-abdominal recorrente após cirurgia inicial e terapêutica antimicrobiana da peritonite bacteriana secundária) e nos abscessos relacionados à patologia duodenal.
A abrangência da cobertura empírica para esses patógenos pode depender da gravidade da doença, de comorbidades clínicas e da adequação do controle do foco.
Pacientes não considerados de alto risco
Pacientes não considerados de alto risco com AIA adquirido na comunidade com gravidade de leve a moderada podem ser tratados com regimes monoterápicos (por exemplo, ertapeném ou moxifloxacino) ou de terapia combinada (por exemplo, metronidazol associado a cefalosporina ou quinolona), todos igualmente efetivos.[2]
Os antibióticos empíricos devem cobrir bacilos Gram-negativos aeróbios e anaeróbios facultativos e estreptococos entéricos Gram-positivos.[2] Na presença de perfurações no intestino delgado distal, apendiculares, colônicas e gastrointestinais proximais com obstrução ou íleo paralítico, esses antibióticos devem ser ativos contra bacilos anaeróbios obrigatórios.[2]
Ampicilina/sulbactam, cefotetana e clindamicina não devem ser usados devido à resistência da E coli e do Bacteroides fragilis a esses antibióticos, respectivamente.[2]
Os pacientes podem passar para uma antibioticoterapia específica, uma vez que os resultados da cultura estejam disponíveis.
Pacientes de alto risco
Pacientes com risco elevado, ou com AIA grave adquirido na comunidade, devem iniciar uma terapêutica antimicrobiana de amplo espectro com cobertura das possíveis bactérias Gram-negativas resistentes a vários medicamentos, inclusive Pseudomonas aeruginosa, e, depois, comprometer-se com a redução da terapêutica antimicrobiana quando os resultados da cultura e de susceptibilidade estiverem disponíveis. Decisões específicas relacionadas à terapêutica antimicrobiana ideal devem ser baseadas, em parte, nos antibiogramas locais e conhecimento de organismos comuns no hospital ou na comunidade. Carbapenema ou piperacilina/tazobactam devem ser usados como monoterapia; se for desejada terapia combinada, metronidazol deve ser combinado com uma cefalosporina.[2]
Deve-se considerar uma cobertura empírica de Enterococcus nestes pacientes. A cobertura do Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA) e de Candida só será recomendada se houver evidência destas infecções.[2]
Em pacientes adultos com infecção intra-abdominal complicada associada aos cuidados de saúde, para obter cobertura empírica dos prováveis patógenos etiológicos, devem ser usados esquemas de vários medicamentos, incluindo agentes de amplo espectro com atividade contra bacilos Gram-negativos aeróbios e anaeróbios facultativos.[2]
Recomenda-se o uso de carbapenema, piperacilina/tazobactam, cefalosporina ou aminoglicosídeo com metronidazol. Recomenda-se terapia antienterocócica empírica (por exemplo, piperacilina/tazobactam) contra o Enterococcus faecalis, especialmente para pacientes com infecção pós-operatória ou materiais protéticos intravasculares, para os que receberam previamente cefalosporinas ou outro antibiótico antienterocócico, e para pacientes imunocomprometidos.[2]
Patógenos resistentes a múltiplos medicamentos estão se tornando uma preocupação constante. Enterococos resistentes à vancomicina (ERV) são patógenos emergentes resistentes a vários antibióticos padrão. Os dados sobre a eficácia e segurança de antimicrobianos específicos são limitados, principalmente com relação ao tratamento de infecções intra-abdominais. A linezolida é aprovada para o tratamento de infecções por ERV; a daptomicina e a tigeciclina também podem ser usadas.[2] Outros antimicrobianos estão sendo lançados, mas ainda não foram aprovados.[48][49]
Vancomicina adjuvante para cobertura de MRSA é indicada em pacientes que foram colonizados por MRSA ou pelos que correm risco de infecção por MRSA devido à falha do tratamento prévio ou à exposição significativa a antibióticos.[2]
Outros organismos resistentes a múltiplos medicamentos incluem bacilos Gram-negativos produtores de beta-lactamase de espectro estendido (BLEE). Os carbapenêmicos são a opção de primeira linha para tratar bactérias BLEE, e ertapeném pode ser melhor para infecções adquiridas na comunidade.[50]
Outras opções estão disponíveis dependendo da suscetibilidade da cepa. O desenvolvimento de novos medicamentos é importante por causa do surgimento de Enterobacteriaceae resistente ao carbapeném (ERC). Opções para tratamento incluem, entre outros, colistimetato (colistina) e tigeciclina. A combinação ceftazidima/avibactam foi aprovada em alguns países, incluindo os EUA, para o tratamento de infecções intra-abdominais complicadas quando usada em associação com metronidazol. É recomendado para pacientes de alto risco com infecção fortemente suspeita ou comprovada por Enterobacteriaceae produtora de Klebsiella pneumoniae carbapenemase (KPC), para a qual outros agentes não são adequados.[2]
A terapia antifúngica só é recomendada se a Candida crescer em culturas intra-abdominais. A C albicans deve ser tratada com fluconazol, enquanto uma equinocandina deve ser usada para espécies de Candida resistentes ao fluconazol em pacientes em estado crítico.[2]
Duração da terapêutica antimicrobiana
A duração da terapêutica antimicrobiana depende da adequação do controle de foco e da resposta do paciente à terapia (ou seja, resolução de todos os sinais e sintomas da infecção, como febre, leucocitose e dor abdominal, e resolução do AIA por imagens diagnósticas repetidas).
Se o paciente não estiver respondendo à terapêutica antimicrobiana empírica de amplo espectro, as imagens diagnósticas e culturas deverão ser repetidas, e uma mudança no tratamento antimicrobiano deverá ser considerada.
Um ensaio bem-sucedido de menor duração de terapêutica antimicrobiana destacou a importância do controle da origem. Um ensaio randomizado multicêntrico comparou a duração dos antimicrobianos escolhidos com base na resolução dos sinais e sintomas clínicos da infecção em comparação com 4 dias após o controle da origem de infecções intra-abdominais complicadas. O estudo constatou que pacientes que receberam antimicrobianos por 4 dias tiveram uma duração mais curta de terapia e não apresentaram nenhuma diferença no desfecho composto de infecção no local da cirurgia, infecção intra-abdominal recorrente e morte dentro de 30 dias.[51]
Considere limitar a terapêutica antimicrobiana a 7 dias em pacientes com bacteremia secundária devido à infecção intra-abdominal, que passaram por um controle de foco adequado e não são mais bacterêmicos.[2]
Deve-se considerar a limitação da antibioticoterapia a 5 a 7 dias em pacientes que não podem ser submetidos ao procedimento de controle de foco definitivo.[2] Nos pacientes que demonstram sinais clínicos persistentes de infecção (febre, leucocitose, alterações na função intestinal) após 5 a 7 dias de antibióticos, deve-se considerar a reavaliação do controle do foco.[2]
O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal