Abordagem

Geralmente, é fácil estabelecer o diagnóstico da icterícia de acordo com o histórico e a observação da coloração amarela da esclera, da pele e das membranas mucosas.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: ​Icterícia: olhos e pele de um paciente​Garry Watson/Science Photo Library [Citation ends].com.bmj.content.model.assessment.Caption@50c52961

História

As manifestações clínicas variam de totalmente assintomática a gravemente doente.

Pergunte sobre:

  • Velocidade do início

    • Dias: geralmente indica hepatite aguda causada por infecção, bebidas alcoólicas ou drogas

    • Semanas: as causas mais prováveis são hepatite subaguda ou obstrução do ducto biliar

    • Variável: induzido por medicamento, carcinoma ampular, cálculos biliares

  • Sintomas associados

    • Dor: a dor no quadrante superior direito pode ser particularmente intensa em pacientes com cálculos biliares ou hepatite alcoólica. A dor relacionada a cálculos biliares pode irradiar para o ombro direito, a escápula direita ou a parte superior do abdome. Um carcinoma invasivo na cabeça do pâncreas pode causar dor epigástrica que irradia para as costas. A maioria das causas de icterícia hepatocelular não causa dor significativa.

    • Fezes claras e urina escura: sugerem causa colestática para icterícia. As fezes são pigmentadas pelo estercobilinogênio, que é produzido pela ação das bactérias intestinais sobre a bilirrubina. Quando a árvore biliar é obstruída, a bile não entra no intestino delgado como de costume, e a produção do estercobilinogênio é interrompida. Como resultado, as fezes aparecem mais claras, enquanto a urina aparece mais escura devido ao aumento da excreção de bilirrubina conjugada na urina.

    • Anorexia, náuseas e vômitos e perda de peso podem ocorrer com cálculos biliares, malignidade ou hepatite.

    • O prurido está presente em 80% a 100% dos pacientes com coléstase e icterícia.[76]

    • A febre pode indicar hepatite aguda, obstrução biliar (inclusive colangite ascendente), leptospirose ou abscesso hepático amebiano.[77]

  • História médica pregressa

    • Doença inflamatória intestinal (aumento do risco de colangite esclerosante primária)

    • Causas hereditárias e adquiridas de hemólise

    • Malignidade prévia

    • História de transfusões de sangue antes de 1992. O rastreamento da hepatite C em sangue doado teve início em 1992 nos EUA.[78] Os pacientes que receberam sangue antes de 1992 apresentam maior risco de infecção por hepatite C.

    • Qualquer cirurgia abdominal.

  • História de consumo de drogas e bebidas alcoólicas

    • Todas as drogas recentes, inclusive medicamentos prescritos, medicamentos de venda livre, remédios fitoterápicos, suplementos, uso de drogas ilegais (inclusive injeção intravenosa). A anamnese deve incluir todos os medicamentos, suplementos fitoterápicos ou alimentares tomados até 180 antes da apresentação, devido aos intervalos ocasionais de longa latência entre a ingestão e a lesão hepática.[23]

    • Quantifique o consumo de bebidas alcoólicas. O Teste de Identificação de Transtornos Devido ao Uso de Álcool (AUDIT) de 10 perguntas é uma ferramenta simples e efetiva.[18] [ Questionário AUDIT para rastreamento do consumo de álcool Opens in new window ] ​ ​Uma pontuação de 8 a 15 indica consumo esporádico intenso de bebidas alcoólicas, de 16 a 19, consumo nocivo de álcool, e ≥20, dependência alcoólica. Uma versão de três perguntas do teste, o AUDIT-C, demonstrou ser sensível e específica em vários cenários clínicos.[79][80]

  • Histórico de viagens recentes: para avaliar a probabilidade de infecção por hepatite A, hepatite B ou infecção parasitária.

  • História sexual: sexo do parceiro, tipo de relação sexual, relações sexuais com pacientes sabidamente infectados com vírus da hepatite B, vírus da hepatite C ou HIV. Homens que fazem sexo com homens e parceiros sexuais de pacientes com infecção crônica por hepatite B apresentam maior risco de infecção pelo vírus da hepatite B.[81]

  • História social: tatuagens ou piercing corporal não esterilizados, residência prévia em países com grande prevalência de hepatite B.

  • História familiar: doença de Wilson, síndrome de Gilbert, hepatite autoimune.

Exame

O exame físico deve focar o fígado e as complicações associadas à cirrose.

É importante distinguir a icterícia da carotenemia, uma condição clínica caracterizada pela pigmentação amarela da pele e pelo aumento dos níveis sanguíneos de betacaroteno. Na maioria dos casos, a condição aparece após um consumo prolongado e excessivo de alimentos ricos em caroteno, como cenoura, abóbora e batata doce. As escleras sempre estão preservadas na carotenemia, o que facilmente a diferencia da icterícia.

Um exame de pele cuidadoso pode revelar marcas de agulha nos membros, evidência de equimose ou petéquias e, em alguns, a presença de aranhas vasculares e eritema palmar. Pode-se observar perda de massa muscular, como emaciação das têmporas e a perda da eminência tenar.

O exame abdominal deve incluir a inspeção rigorosa das veias colaterais (cabeça de medusa) e de ascite. O fígado e o baço devem ser apalpados e percutidos durante a inspiração e a expiração, para verificar se há aumento, dor e nodularidade. Um fígado nodular com tamanho reduzido sugere cirrose, e a presença de vasos colaterais sugere hipertensão portal.

Observe a presença ou ausência de uma vesícula biliar palpável. A lei de Courvoisier declara que o aumento da vesícula biliar com icterícia provavelmente decorre do carcinoma obstrutivo em vez de um cálculo no ducto colédoco. Com um cálculo do ducto colédoco, a vesícula biliar geralmente tem cicatrizes provocadas por infecções e não se distende.

A encefalopatia hepática produz um espectro de sinais neurológicos e psiquiátricos. A avaliação do nível de consciência do paciente é essencial, assim como os achados do exame físico, como asterixis (flapping). Os Critérios de West Haven podem ser usados para categorizar a encefalopatia hepática em graus com base na gravidade:[82]

  • Grau 1: atenção normal sutilmente prejudicada, alterações do sono, tempo de atenção encurtado, comprometimento da adição ou da subtração, humor elevado ou ansiedade, orientado no tempo e no espaço

  • Grau 2: letargia ou apatia, desorientação em relação ao tempo, alteração de personalidade óbvia, comportamento inadequado, dispraxia, asterixis (flapping)

  • Grau 3: sonolência a semiestupor, com resposta clínica a estímulos vocais, confusão acentuada, desorientação aguda (desorientado no tempo e no espaço), comportamento bizarro; os achados físicos podem incluir hiper-reflexia, nistagmo, clônus e rigidez

  • Grau 4: coma.

O exame pulmonar pode revelar evidências de derrame pleural (hidrotórax hepático). O exame cardiovascular pode sugerir disfunção hepática devida a congestão causada por insuficiência cardíaca direita. O exame retal pode revelar evidência de hemorragia digestiva.

Exames laboratoriais

Os exames laboratoriais iniciais para todos os pacientes devem incluir:

  • Testes séricos da função hepática com fracionamento da bilirrubina (direta e indireta)

    • Três padrões de desequilíbrio da função hepática têm sido descritos: colestático, hepatocelular e misto.

    • O padrão colestático consiste na elevação predominante de bilirrubina, fosfatase alcalina e gama-glutamiltransferase, e o padrão hepatocelular consiste em elevações da bilirrubina, da aspartato aminotransferase (AST) e da alanina aminotransferase (ALT).

    • Esses padrões são inespecíficos e podem se sobrepor consideravelmente (isto é, lesão no fígado com características de lesão colestática e hepatocelular).

    • Observe que os níveis de ALT e AST podem ser normais na cirrose hepática, pois há insuficiência de tecido hepático saudável para liberar quantidades elevadas dessas enzimas.[1]

    • A proporção AST/ALT séricas >2 é típica da doença hepática alcoólica e ocorre em cerca de 70% dos pacientes.[83] A reversão dessa proporção, com a ALT mais elevada que a AST, sugere a presença concomitante de hepatite viral ou doença hepática gordurosa não alcoólica como causa da disfunção hepática nos pacientes que fazem uso indevido de bebidas alcoólicas.

  • Tempo de protrombina (TP) e razão normalizada internacional (INR)

    • Um aumento em TP e INR associado a um baixo nível de albumina é indicativo de disfunção hepática sintética e sugestivo de cirrose ou insuficiência hepática aguda.

    • A INR é um componente do escore para hepatite alcoólica de Glasgow (usado para determinar a gravidade e o prognóstico da hepatite alcoólica aguda) e do escore de Modelo para doença hepática em estágio terminal (MELD) (usado para estimar a gravidade relativa da doença e o prognóstico dos pacientes que aguardam transplante de fígado).[68][84][85]

    • A elevação do TP e da INR pode ser observada na colestase sem disfunção hepática sintética, devido à má absorção da vitamina K.

  • Hemograma completo

    • A trombocitopenia sugere hipertensão portal que causa hiperesplenismo. A presença de anemia é uma característica proeminente em pacientes com doença hepática e deve ser investigada de forma mais aprofundada com o perfil de ferro.

Os outros exames laboratoriais a serem considerados incluem:

  • Creatinina sérica, ureia e eletrólitos

    • Pode ocorrer lesão renal aguda nos pacientes com insuficiência hepática aguda, insuficiência hepática crônica agudizada e cirrose descompensada.

    • A hiponatremia é comum na cirrose.

    • Pode haver elevação da ureia e da razão ureia/creatinina se houver hemorragia digestiva alta.

    • A creatinina é um componente do escore MELD.[68]

    • A ureia é um componente do escore de Glasgow para hepatite alcoólica.[84][85]

    • Proteína C-reativa e velocidade de hemossedimentação (VHS).

    • Elevada nas infecções (por exemplo, colangite ascendente, leptospirose, abscesso hepático amebiano) e doenças inflamatórias (por exemplo, insuficiência hepática crônica agudizada, hepatite alcoólica aguda).

    • A VHS pode estar elevada nas doenças autoimunes (por exemplo, hepatite autoimune).

  • Paracetamol sérico

    • Medida nos casos de insuficiência hepática aguda e suspeita de lesão hepática induzida por medicamentos.

  • Exames microbiológicos

    • Os pacientes com cirrose descompensada ou doença hepática alcoólica devem realizar um rastreamento abrangente para infecções que inclua hemocultura e cultura de urina.[66][67][86]

    • Imunoglobulina M (IgM) contra vírus da hepatite A, sorologia para hepatite B, carga viral para hepatite B, imunoglobulina M (IgM) contra vírus da hepatite C e carga viral, anticorpo contra hepatite D (nos pacientes com infecção por hepatite B), anticorpo contra hepatite E, se houver suspeita de hepatite viral.

    • Ensaio de imunoadsorção enzimática (ELISA) para IgM contra leptospirose, hemoculturas, teste de aglutinação microscópica e reação em cadeia da polimerase para DNA leptospiral, se houver suspeita de leptospirose.

  • Testes imunológicos

    • Fator antinuclear, anticorpo antimúsculo liso, anticorpo para antígeno microssomal fígado/rim tipo 1 (anti-LKM-1) e anticorpo antígeno antisolúvel hepático, se houver suspeita de hepatite autoimune.

    • Anticorpo antimitocondrial, se houver suspeita de colangite biliar primária.

    • Imunoglobulina G4 (IgG4) sérica, se houver suspeita de colangiopatia relacionada à imunoglobulina G4 (IgG4).

  • Suspeita de hemólise

    • Haptoglobina, lactato desidrogenase, contagem de reticulócitos, esfregaço de sangue periférico, teste de antiglobulina direto e indireto, bilirrubina direta/indireta.

  • Suspeita de doença de Wilson

    • Ceruloplasmina sérica e excreção urinária de cobre.

  • Suspeita de deficiência de alfa 1-antitripsina

    • Nível sérico de alfa 1-antitripsina.

  • Suspeita de hemocromatose hereditária

    • O rastreamento inicial deve incluir ferro total, capacidade total de ligação do ferro (TIBC), saturação da transferrina (ferro/ TIBC) e ferritina.

    • Se a saturação de transferrina for elevada (>45%), deverão ser considerados outros testes genéticos.

  • Paracentese

    • Deve ser realizada em todos os pacientes com cirrose descompensada.

    • O líquido ascítico é examinado para contagem absoluta de neutrófilos, coloração de Gram, cultura microbiológica e albumina fluida.[66][67]

    • Uma contagem de leucócitos polimorfonucleares (PMNs) no líquido >250 células/mm³ é diagnóstica de peritonite bacteriana espontânea.[67]


    Demonstração animada de uma paracentese abdominal
    Demonstração animada de uma paracentese abdominal

    Demonstra como realizar uma paracentese abdominal diagnóstica e terapêutica.


  • Radiografia torácica para potenciais complicações

    • Rastreamentos para pneumonia nos pacientes com hepatopatia alcoólica ou cirrose descompensada.[67]

    • Pode ocorrer derrame pleural como complicação da cirrose (hidrotórax hepático).

    • Sinais de insuficiência cardíaca (por exemplo, cardiomegalia, derrame pleural, edema pulmonar) costumam estar presentes nos pacientes com insuficiência cardíaca congestiva.[74]

Exames de imagem iniciais

A maioria dos pacientes requer alguma forma de exame de imagem, para que possa descartar definitivamente uma obstrução mecânica e identificar pistas das causas hepáticas e colestáticas.

Para pacientes com icterícia que não apresentam condições predisponentes, a ultrassonografia é a modalidade de investigação inicial preferencial.

Ultrassonografia no diagnóstico de icterícia obstrutiva

Os processos obstrutivos causam dilatação da árvore biliar intra-hepática ou extra-hepática, a qual geralmente pode ser detectada por ultrassonografia.

A ultrassonografia é precisa, de baixo custo, prontamente disponível e não invasiva (com sensibilidade registrada de 32% a 100% e especificidade de 71% a 97%) para a detecção de obstrução biliar.[92] A ultrassonografia pode indicar a localização da obstrução e se ela é provavelmente benigna ou maligna, orientando, assim, a escolha por exames de imagem subsequentes: tomografia computadorizada (TC), para suspeita de neoplasia maligna biliar ou pancreática, e ressonância nuclear magnética (RNM) para as suspeitas de causas benignas.[92][93]

A ultrassonografia é limitada pela menor sensibilidade para detecção de cálculos biliares ductais e pela impossibilidade de se visualizar o ducto colédoco distal se ele estiver esteja obscurecido pelos gases intestinais sobrejacentes.[92] Falsos negativos podem ocorrer nos estágios iniciais da obstrução, antes que ocorra dilatação.

Em pacientes com doença hepática crônica descompensada com icterícia e ascite, a adição de estudos Doppler do trato portal no momento da ultrassonografia e as imagens da tomografia computadorizada (TC) trifásica subsequente do fígado seriam úteis para excluir a oclusão da veia porta.[92]

Nos casos em que a maioria dos órgãos abdominais precisa ser avaliada, pode-se usar uma TC ou uma RNM, embora a TC mostre toda a anatomia abdominal de modo mais confiável.[92]

Exames de imagem adicionais para suspeita de obstrução mecânica

Tomografia computadorizada (TC) abdominal

Nos pacientes com obstrução biliar aguda e suspeita de condições complicadoras que não forem bem avaliadas pela sonografia (por exemplo, colangite, colecistite ou pancreatite), um estudo de tomografia computadorizada (TC) abdominal pré e pós-contraste intravenoso é útil para definir o nível da obstrução, a provável causa e as complicações coexistentes.

A obstrução maligna é mais comumente devida a carcinoma pancreático, mas pode ocorrer em decorrência de colangiocarcinoma ductal proximal ou distal ou de compressão extrínseca do ducto por linfonodos peri-ductais aumentados. Um exame de tomografia computadorizada (TC) de várias passagens com contraste tem alta sensibilidade para detecção de lesões e 70% de precisão na discriminação de doença ressecável e irressecável.

A TC pode detectar cálculos biliares parcialmente calcificados, mas é relativamente insensível para detectar cálculos de bilirrubinato ou de colesterol.[92]

Ressonância magnética (RM)

Para a detecção de cálculos ductais, a RNM é mais sensível que a TC ou a ultrassonografia.

Para o diagnóstico de cálculos do ducto colédoco, a colangiopancreatografia por RM tem uma sensibilidade relatada que varia entre 77% a 88%, especificidade entre 50% a 72%, acurácia de 83%, valor preditivo positivo entre 87% a 90%, e valor preditivo negativo entre 27% a 72%, em comparação com o padrão ouro, ou seja, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica.[92][94][95]

Ultrassonografia endoscópica e colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE)

Quando a TC/RNM e a sonografia forem ambíguas, a CPRE e a ultrassonografia endoscópica podem ser benéficas, possibilitando que o diagnóstico citológico seja feito usando-se aspiração com agulha fina ou escovação. A CPRE envolve passar um endoscópio até o duodeno, canular a ampola e injetar contraste no ducto colédoco. Obtêm-se imagens fluoroscópicas da árvore biliar.

A TC/tomografia por emissão de pósitrons com fluordesoxiglucose pode ser considerada nos pacientes com icterícia obstrutiva e suspeita de câncer de pâncreas não confirmada por TC.[96]

A ultrassonografia endoscópica ou a CPRE podem ser realizadas, caso seja identificada estenose.[39][97]​ Para estenoses extra-hepáticas, a aquisição de tecido guiada por ultrassonografia endoscópica pode ser preferencial à CPRE.[98]

Em caso de suspeita clínica persistente, mas evidências insuficientes de cálculos à ultrassonografia abdominal, a ultrassonografia endoscópica pode ser usada para diagnosticar cálculos no ducto colédoco.[99]

A CPRE é quase sempre executada como um procedimento terapêutico após a confirmação de cálculos no ducto colédoco ou uma obstrução maligna detectada em TC ou RNM. Uma varredura por balão do ducto colédoco pode remover cálculos em 80% a 95% dos casos. É possível também realizar uma esfincterotomia, implantação de stent e biópsia. O procedimento apresenta de 4,0% a 5,2% de risco de complicações maiores, tais como hemorragia, perfuração, pancreatite ou colangite.[92]

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