Abordagem
Geralmente, é fácil estabelecer o diagnóstico da icterícia de acordo com o histórico e a observação da coloração amarela da esclera, da pele e das membranas mucosas.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Icterícia: olhos e pele de um pacienteGarry Watson/Science Photo Library [Citation ends].
História
As manifestações clínicas variam de totalmente assintomática a gravemente doente.
Pergunte sobre:
Velocidade do início
Dias: geralmente indica hepatite aguda causada por infecção, bebidas alcoólicas ou drogas
Semanas: as causas mais prováveis são hepatite subaguda ou obstrução do ducto biliar
Variável: induzido por medicamento, carcinoma ampular, cálculos biliares
Sintomas associados
Dor: a dor no quadrante superior direito pode ser particularmente intensa em pacientes com cálculos biliares ou hepatite alcoólica. A dor relacionada a cálculos biliares pode irradiar para o ombro direito, a escápula direita ou a parte superior do abdome. Um carcinoma invasivo na cabeça do pâncreas pode causar dor epigástrica que irradia para as costas. A maioria das causas de icterícia hepatocelular não causa dor significativa.
Fezes claras e urina escura: sugerem causa colestática para icterícia. As fezes são pigmentadas pelo estercobilinogênio, que é produzido pela ação das bactérias intestinais sobre a bilirrubina. Quando a árvore biliar é obstruída, a bile não entra no intestino delgado como de costume, e a produção do estercobilinogênio é interrompida. Como resultado, as fezes aparecem mais claras, enquanto a urina aparece mais escura devido ao aumento da excreção de bilirrubina conjugada na urina.
Anorexia, náuseas e vômitos e perda de peso podem ocorrer com cálculos biliares, malignidade ou hepatite.
O prurido está presente em 80% a 100% dos pacientes com coléstase e icterícia.[76]
A febre pode indicar hepatite aguda, obstrução biliar (inclusive colangite ascendente), leptospirose ou abscesso hepático amebiano.[77]
História médica pregressa
Doença inflamatória intestinal (aumento do risco de colangite esclerosante primária)
Causas hereditárias e adquiridas de hemólise
Malignidade prévia
História de transfusões de sangue antes de 1992. O rastreamento da hepatite C em sangue doado teve início em 1992 nos EUA.[78] Os pacientes que receberam sangue antes de 1992 apresentam maior risco de infecção por hepatite C.
Qualquer cirurgia abdominal.
História de consumo de drogas e bebidas alcoólicas
Todas as drogas recentes, inclusive medicamentos prescritos, medicamentos de venda livre, remédios fitoterápicos, suplementos, uso de drogas ilegais (inclusive injeção intravenosa). A anamnese deve incluir todos os medicamentos, suplementos fitoterápicos ou alimentares tomados até 180 antes da apresentação, devido aos intervalos ocasionais de longa latência entre a ingestão e a lesão hepática.[23]
Quantifique o consumo de bebidas alcoólicas. O Teste de Identificação de Transtornos Devido ao Uso de Álcool (AUDIT) de 10 perguntas é uma ferramenta simples e efetiva.[18] [ Questionário AUDIT para rastreamento do consumo de álcool Opens in new window ] Uma pontuação de 8 a 15 indica consumo esporádico intenso de bebidas alcoólicas, de 16 a 19, consumo nocivo de álcool, e ≥20, dependência alcoólica. Uma versão de três perguntas do teste, o AUDIT-C, demonstrou ser sensível e específica em vários cenários clínicos.[79][80]
Histórico de viagens recentes: para avaliar a probabilidade de infecção por hepatite A, hepatite B ou infecção parasitária.
História sexual: sexo do parceiro, tipo de relação sexual, relações sexuais com pacientes sabidamente infectados com vírus da hepatite B, vírus da hepatite C ou HIV. Homens que fazem sexo com homens e parceiros sexuais de pacientes com infecção crônica por hepatite B apresentam maior risco de infecção pelo vírus da hepatite B.[81]
História social: tatuagens ou piercing corporal não esterilizados, residência prévia em países com grande prevalência de hepatite B.
História familiar: doença de Wilson, síndrome de Gilbert, hepatite autoimune.
Exame
O exame físico deve focar o fígado e as complicações associadas à cirrose.
É importante distinguir a icterícia da carotenemia, uma condição clínica caracterizada pela pigmentação amarela da pele e pelo aumento dos níveis sanguíneos de betacaroteno. Na maioria dos casos, a condição aparece após um consumo prolongado e excessivo de alimentos ricos em caroteno, como cenoura, abóbora e batata doce. As escleras sempre estão preservadas na carotenemia, o que facilmente a diferencia da icterícia.
Um exame de pele cuidadoso pode revelar marcas de agulha nos membros, evidência de equimose ou petéquias e, em alguns, a presença de aranhas vasculares e eritema palmar. Pode-se observar perda de massa muscular, como emaciação das têmporas e a perda da eminência tenar.
O exame abdominal deve incluir a inspeção rigorosa das veias colaterais (cabeça de medusa) e de ascite. O fígado e o baço devem ser apalpados e percutidos durante a inspiração e a expiração, para verificar se há aumento, dor e nodularidade. Um fígado nodular com tamanho reduzido sugere cirrose, e a presença de vasos colaterais sugere hipertensão portal.
Observe a presença ou ausência de uma vesícula biliar palpável. A lei de Courvoisier declara que o aumento da vesícula biliar com icterícia provavelmente decorre do carcinoma obstrutivo em vez de um cálculo no ducto colédoco. Com um cálculo do ducto colédoco, a vesícula biliar geralmente tem cicatrizes provocadas por infecções e não se distende.
A encefalopatia hepática produz um espectro de sinais neurológicos e psiquiátricos. A avaliação do nível de consciência do paciente é essencial, assim como os achados do exame físico, como asterixis (flapping). Os Critérios de West Haven podem ser usados para categorizar a encefalopatia hepática em graus com base na gravidade:[82]
Grau 1: atenção normal sutilmente prejudicada, alterações do sono, tempo de atenção encurtado, comprometimento da adição ou da subtração, humor elevado ou ansiedade, orientado no tempo e no espaço
Grau 2: letargia ou apatia, desorientação em relação ao tempo, alteração de personalidade óbvia, comportamento inadequado, dispraxia, asterixis (flapping)
Grau 3: sonolência a semiestupor, com resposta clínica a estímulos vocais, confusão acentuada, desorientação aguda (desorientado no tempo e no espaço), comportamento bizarro; os achados físicos podem incluir hiper-reflexia, nistagmo, clônus e rigidez
Grau 4: coma.
O exame pulmonar pode revelar evidências de derrame pleural (hidrotórax hepático). O exame cardiovascular pode sugerir disfunção hepática devida a congestão causada por insuficiência cardíaca direita. O exame retal pode revelar evidência de hemorragia digestiva.
Exames laboratoriais
Os exames laboratoriais iniciais para todos os pacientes devem incluir:
Testes séricos da função hepática com fracionamento da bilirrubina (direta e indireta)
Três padrões de desequilíbrio da função hepática têm sido descritos: colestático, hepatocelular e misto.
O padrão colestático consiste na elevação predominante de bilirrubina, fosfatase alcalina e gama-glutamiltransferase, e o padrão hepatocelular consiste em elevações da bilirrubina, da aspartato aminotransferase (AST) e da alanina aminotransferase (ALT).
Esses padrões são inespecíficos e podem se sobrepor consideravelmente (isto é, lesão no fígado com características de lesão colestática e hepatocelular).
Observe que os níveis de ALT e AST podem ser normais na cirrose hepática, pois há insuficiência de tecido hepático saudável para liberar quantidades elevadas dessas enzimas.[1]
A proporção AST/ALT séricas >2 é típica da doença hepática alcoólica e ocorre em cerca de 70% dos pacientes.[83] A reversão dessa proporção, com a ALT mais elevada que a AST, sugere a presença concomitante de hepatite viral ou doença hepática gordurosa não alcoólica como causa da disfunção hepática nos pacientes que fazem uso indevido de bebidas alcoólicas.
Tempo de protrombina (TP) e razão normalizada internacional (INR)
Um aumento em TP e INR associado a um baixo nível de albumina é indicativo de disfunção hepática sintética e sugestivo de cirrose ou insuficiência hepática aguda.
A INR é um componente do escore para hepatite alcoólica de Glasgow (usado para determinar a gravidade e o prognóstico da hepatite alcoólica aguda) e do escore de Modelo para doença hepática em estágio terminal (MELD) (usado para estimar a gravidade relativa da doença e o prognóstico dos pacientes que aguardam transplante de fígado).[68][84][85]
A elevação do TP e da INR pode ser observada na colestase sem disfunção hepática sintética, devido à má absorção da vitamina K.
Hemograma completo
A trombocitopenia sugere hipertensão portal que causa hiperesplenismo. A presença de anemia é uma característica proeminente em pacientes com doença hepática e deve ser investigada de forma mais aprofundada com o perfil de ferro.
Os outros exames laboratoriais a serem considerados incluem:
Creatinina sérica, ureia e eletrólitos
Pode ocorrer lesão renal aguda nos pacientes com insuficiência hepática aguda, insuficiência hepática crônica agudizada e cirrose descompensada.
A hiponatremia é comum na cirrose.
Pode haver elevação da ureia e da razão ureia/creatinina se houver hemorragia digestiva alta.
A creatinina é um componente do escore MELD.[68]
Proteína C-reativa e velocidade de hemossedimentação (VHS).
Elevada nas infecções (por exemplo, colangite ascendente, leptospirose, abscesso hepático amebiano) e doenças inflamatórias (por exemplo, insuficiência hepática crônica agudizada, hepatite alcoólica aguda).
A VHS pode estar elevada nas doenças autoimunes (por exemplo, hepatite autoimune).
Paracetamol sérico
Medida nos casos de insuficiência hepática aguda e suspeita de lesão hepática induzida por medicamentos.
Exames microbiológicos
Os pacientes com cirrose descompensada ou doença hepática alcoólica devem realizar um rastreamento abrangente para infecções que inclua hemocultura e cultura de urina.[66][67][86]
Imunoglobulina M (IgM) contra vírus da hepatite A, sorologia para hepatite B, carga viral para hepatite B, imunoglobulina M (IgM) contra vírus da hepatite C e carga viral, anticorpo contra hepatite D (nos pacientes com infecção por hepatite B), anticorpo contra hepatite E, se houver suspeita de hepatite viral.
Ensaio de imunoadsorção enzimática (ELISA) para IgM contra leptospirose, hemoculturas, teste de aglutinação microscópica e reação em cadeia da polimerase para DNA leptospiral, se houver suspeita de leptospirose.
Testes imunológicos
Fator antinuclear, anticorpo antimúsculo liso, anticorpo para antígeno microssomal fígado/rim tipo 1 (anti-LKM-1) e anticorpo antígeno antisolúvel hepático, se houver suspeita de hepatite autoimune.
Anticorpo antimitocondrial, se houver suspeita de colangite biliar primária.
Imunoglobulina G4 (IgG4) sérica, se houver suspeita de colangiopatia relacionada à imunoglobulina G4 (IgG4).
Suspeita de hemólise
Haptoglobina, lactato desidrogenase, contagem de reticulócitos, esfregaço de sangue periférico, teste de antiglobulina direto e indireto, bilirrubina direta/indireta.
Suspeita de doença de Wilson
Ceruloplasmina sérica e excreção urinária de cobre.
Suspeita de deficiência de alfa 1-antitripsina
Nível sérico de alfa 1-antitripsina.
Suspeita de hemocromatose hereditária
O rastreamento inicial deve incluir ferro total, capacidade total de ligação do ferro (TIBC), saturação da transferrina (ferro/ TIBC) e ferritina.
Se a saturação de transferrina for elevada (>45%), deverão ser considerados outros testes genéticos.
Paracentese
Deve ser realizada em todos os pacientes com cirrose descompensada.
O líquido ascítico é examinado para contagem absoluta de neutrófilos, coloração de Gram, cultura microbiológica e albumina fluida.[66][67]
Uma contagem de leucócitos polimorfonucleares (PMNs) no líquido >250 células/mm³ é diagnóstica de peritonite bacteriana espontânea.[67]
Demonstração animada de uma paracentese abdominalDemonstra como realizar uma paracentese abdominal diagnóstica e terapêutica.
Radiografia torácica para potenciais complicações
Rastreamentos para pneumonia nos pacientes com hepatopatia alcoólica ou cirrose descompensada.[67]
Pode ocorrer derrame pleural como complicação da cirrose (hidrotórax hepático).
Sinais de insuficiência cardíaca (por exemplo, cardiomegalia, derrame pleural, edema pulmonar) costumam estar presentes nos pacientes com insuficiência cardíaca congestiva.[74]
Exames de imagem iniciais
A maioria dos pacientes requer alguma forma de exame de imagem, para que possa descartar definitivamente uma obstrução mecânica e identificar pistas das causas hepáticas e colestáticas.
Para pacientes com icterícia que não apresentam condições predisponentes, a ultrassonografia é a modalidade de investigação inicial preferencial.
Ultrassonografia no diagnóstico de icterícia obstrutiva
Os processos obstrutivos causam dilatação da árvore biliar intra-hepática ou extra-hepática, a qual geralmente pode ser detectada por ultrassonografia.
A ultrassonografia é precisa, de baixo custo, prontamente disponível e não invasiva (com sensibilidade registrada de 32% a 100% e especificidade de 71% a 97%) para a detecção de obstrução biliar.[92] A ultrassonografia pode indicar a localização da obstrução e se ela é provavelmente benigna ou maligna, orientando, assim, a escolha por exames de imagem subsequentes: tomografia computadorizada (TC), para suspeita de neoplasia maligna biliar ou pancreática, e ressonância nuclear magnética (RNM) para as suspeitas de causas benignas.[92][93]
A ultrassonografia é limitada pela menor sensibilidade para detecção de cálculos biliares ductais e pela impossibilidade de se visualizar o ducto colédoco distal se ele estiver esteja obscurecido pelos gases intestinais sobrejacentes.[92] Falsos negativos podem ocorrer nos estágios iniciais da obstrução, antes que ocorra dilatação.
Em pacientes com doença hepática crônica descompensada com icterícia e ascite, a adição de estudos Doppler do trato portal no momento da ultrassonografia e as imagens da tomografia computadorizada (TC) trifásica subsequente do fígado seriam úteis para excluir a oclusão da veia porta.[92]
Nos casos em que a maioria dos órgãos abdominais precisa ser avaliada, pode-se usar uma TC ou uma RNM, embora a TC mostre toda a anatomia abdominal de modo mais confiável.[92]
Exames de imagem adicionais para suspeita de obstrução mecânica
Tomografia computadorizada (TC) abdominal
Nos pacientes com obstrução biliar aguda e suspeita de condições complicadoras que não forem bem avaliadas pela sonografia (por exemplo, colangite, colecistite ou pancreatite), um estudo de tomografia computadorizada (TC) abdominal pré e pós-contraste intravenoso é útil para definir o nível da obstrução, a provável causa e as complicações coexistentes.
A obstrução maligna é mais comumente devida a carcinoma pancreático, mas pode ocorrer em decorrência de colangiocarcinoma ductal proximal ou distal ou de compressão extrínseca do ducto por linfonodos peri-ductais aumentados. Um exame de tomografia computadorizada (TC) de várias passagens com contraste tem alta sensibilidade para detecção de lesões e 70% de precisão na discriminação de doença ressecável e irressecável.
A TC pode detectar cálculos biliares parcialmente calcificados, mas é relativamente insensível para detectar cálculos de bilirrubinato ou de colesterol.[92]
Ressonância magnética (RM)
Para a detecção de cálculos ductais, a RNM é mais sensível que a TC ou a ultrassonografia.
Para o diagnóstico de cálculos do ducto colédoco, a colangiopancreatografia por RM tem uma sensibilidade relatada que varia entre 77% a 88%, especificidade entre 50% a 72%, acurácia de 83%, valor preditivo positivo entre 87% a 90%, e valor preditivo negativo entre 27% a 72%, em comparação com o padrão ouro, ou seja, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica.[92][94][95]
Ultrassonografia endoscópica e colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE)
Quando a TC/RNM e a sonografia forem ambíguas, a CPRE e a ultrassonografia endoscópica podem ser benéficas, possibilitando que o diagnóstico citológico seja feito usando-se aspiração com agulha fina ou escovação. A CPRE envolve passar um endoscópio até o duodeno, canular a ampola e injetar contraste no ducto colédoco. Obtêm-se imagens fluoroscópicas da árvore biliar.
A TC/tomografia por emissão de pósitrons com fluordesoxiglucose pode ser considerada nos pacientes com icterícia obstrutiva e suspeita de câncer de pâncreas não confirmada por TC.[96]
A ultrassonografia endoscópica ou a CPRE podem ser realizadas, caso seja identificada estenose.[39][97] Para estenoses extra-hepáticas, a aquisição de tecido guiada por ultrassonografia endoscópica pode ser preferencial à CPRE.[98]
Em caso de suspeita clínica persistente, mas evidências insuficientes de cálculos à ultrassonografia abdominal, a ultrassonografia endoscópica pode ser usada para diagnosticar cálculos no ducto colédoco.[99]
A CPRE é quase sempre executada como um procedimento terapêutico após a confirmação de cálculos no ducto colédoco ou uma obstrução maligna detectada em TC ou RNM. Uma varredura por balão do ducto colédoco pode remover cálculos em 80% a 95% dos casos. É possível também realizar uma esfincterotomia, implantação de stent e biópsia. O procedimento apresenta de 4,0% a 5,2% de risco de complicações maiores, tais como hemorragia, perfuração, pancreatite ou colangite.[92]
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