Considerações de urgência
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Choque hemorrágico
A cavidade abdominal é um grande espaço potencial para hemorragia que oferece pouca possibilidade para o surgimento de um efeito de tamponamento, em virtude de sua tendência de se distender. Lesões abdominais vasculares, esplênicas e hepáticas podem rapidamente ocasionar instabilidade hemodinâmica e choque. De forma similar, lesões renais podem rapidamente levar a hemorragia de grande volume para o interior do espaço retroperitoneal. Portanto, é fundamental que a avaliação e o manejo iniciais sejam realizados com agilidade.
O choque hemorrágico é uma condição de redução da perfusão com fornecimento inadequado de oxigênio, causado por sangramento agudo. Ele pode apresentar-se com hipotensão; taquicardia; oligúria; taquipneia; diminuição ou ausência de pulsação; alterações sensoriais; pele pálida, fria e sudorética. Aconselha-se uma consulta urgente com um cirurgião e um anestesista. Pacientes com choque hemorrágico necessitam de ressuscitação agressiva com fluidos, transfusões de sangue e controle da hemorragia. Os pacientes hemodinamicamente instáveis ou que apresentam desconforto abdominal difuso após trauma abdominal penetrante deverão ser submetidos urgentemente a laparotomia.[13]
As diretrizes europeias recomendam que os pacientes sejam submetidos a um procedimento para controle do sangramento imediato se tiverem uma fonte de sangramento óbvia, e se apresentarem choque hemorrágico nas extremidades e tiverem uma fonte de sangramento suspeitada.[14] Os pacientes com ferimentos por arma de fogo, arma branca ou estilhaços são exemplos de pacientes que tipicamente se enquadram nessa categoria. Caso se preveja a necessidade de uma transfusão, deve-se extrair sangue para a realização de prova cruzada e preparar várias unidades de concentrados de eritrócitos.
Pacientes com choque hemorrágico grave, sugerido por hipotensão extrema e estado mental gravemente comprometido (ou seja, coma), necessitam de transfusão sanguínea imediata sem prova cruzada. Dispositivos para manutenção da pressão arterial e aquecimento do sangue podem ser úteis em situações de hemorragia profunda. Com transfusões de grande volume, a coagulação pode ser afetada, devendo ser monitorada e tratada com plasma fresco congelado e plaquetas, conforme necessário. Esses pacientes necessitam de, pelo menos, dois acessos intravenosos periféricos funcionais de grosso calibre, para a administração de fluidos, e de um cateter de Foley, para permitir o monitoramento rigoroso do débito urinário. Se for difícil estabelecer acesso periférico, recomenda-se inserção de um cateter central curto e de grosso calibre na veia femoral ou subclávia. Acessos centrais longos de duplo ou triplo lúmen devem ser evitados, pois o fluido não pode ser infundido rapidamente através destes cateteres.
Um estudo realizado em 2009 mostrou que a transfusão agressiva de concentrados de hemácias, plasma fresco congelado e plaquetas melhora o desfecho em pacientes de trauma hemodinamicamente instáveis.[15] Evidências obtidas de um pequeno ensaio randomizado sugerem que os concentrados de fatores de coagulação podem ser mais eficazes que o plasma fresco congelado em pacientes com coagulopatia induzida por trauma.[16]
O atraso na realização de laparotomia em um paciente acometido por trauma abdominal com sangramento intra-abdominal aumenta a morbidade e a mortalidade.[17] As diretrizes europeias recomendam o teste do lactato sérico para estimar a monitorar a extensão do sangramento e a hipoperfusão tecidual.[14] O deficit de base, calculado pela medição da gasometria arterial, pode ser usado como alternativa; no entanto, os níveis de lactato refletem o grau de hipoperfusão tecidual de maneira mais específica.[14]
Antifibrinolíticos (como ácido tranexâmico) devem ser considerados em todos os pacientes de trauma com hemorragia grave aguda assim que possível, uma vez que demonstraram aumentar a sobrevida quando administrados em até 3 horas após a lesão.[18][19] Uma metanálise constatou que, entre pacientes com sangramento traumático ou hemorragia pós-parto, o tratamento imediato com ácido tranexâmico aumenta consideravelmente as chances de sobrevivência, sendo que o benefício de sobrevida diminui em cerca de 10% para cada 15 minutos de demora no tratamento até 3 horas. Após esse período, não há nenhum benefício.[20]
As diretrizes recomendam que pacientes que se apresentam com choque hemorrágico e uma origem de sangramento não identificada (como pode ocorrer no traumatismo contuso) sejam submetidos imediatamente a avaliação por ultrassonografia na avaliação do traumatismo (FAST).[21][22] Esse exame é útil para diagnosticar rapidamente a hemorragia intra-abdominal.[23][24] O exame FAST usa um aparelho de ultrassonografia à beira do leito para fornecer imagens do quadrante superior direito, do quadrante superior esquerdo e da pelve para avaliar a presença de hemorragia intra-abdominal. De acordo com uma revisão Cochrane, a sensibilidade e a especificidade de uma sonografia no local de atendimento são de 68% e 95% para adultos e crianças com trauma abdominal.[25] Se o exame FAST não estiver disponível ou não for confiável, pode ser feita uma lavagem peritoneal diagnóstica (LPD) para avaliação do sangramento intraperitoneal.[26] A LPD consiste na realização de uma pequena incisão na linha média abaixo do umbigo e no uso de uma agulha e um pequeno cateter para aspirar o fluido intraperitoneal para determinar a presença de sangue ou bile. Se o aspirado contém 10 mL de sangue macroscópico ou bile, é indicada uma laparotomia exploratória. Na ausência de sangue macroscópico ou bile, a LPD requer a infusão de 1 litro de fluido no peritônio, seguida de drenagem. O efluente deve ser enviado para um laboratório e analisado. Os critérios laboratoriais para uma LPD positiva são:
>1.0 × 10¹² eritrócitos/L (>100,000 eritrócitos/mm³)
>0.50 × 10⁹ leucócitos/L (>500 leucócitos/mm³)
Presença de bactérias, bile ou partículas alimentares.
Pacientes que apresentarem um volume significativo de líquido intra-abdominal livre de acordo com o exame FAST (ou LPD) e estiverem hemodinamicamente instáveis devem se submeter a cirurgia urgente.
As diretrizes europeias recomendam o uso da tomografia computadorizada (TC) do corpo inteiro com contraste para detectar e identificar o tipo de lesão e a potencial fonte de sangramento.[14] Geralmente, os pacientes com trauma penetrante e sinais de instabilidade hemodinâmica são submetidos à cirurgia sem TC; no entanto, alguns autores recomendam realizar a tomografia computadorizada (TC) do corpo inteiro com contraste enquanto se continua a ressuscitação, independentemente do estado hemodinâmico.[22][27][28][29]
A Eastern Association for the Surgery of Trauma faz as seguintes recomendações em relação ao tratamento do trauma abdominal penetrante.[13]
Providenciar uma laparotomia urgente para os pacientes hemodinamicamente instáveis ou com desconforto abdominal difuso
Realizar uma laparotomia exploratória ou outra investigação diagnóstica para verificar a presença de lesão intraperitoneal nos pacientes hemodinamicamente estáveis, mas que tenham apresentado um exame clínico não confiável (por exemplo, pacientes com traumatismo cranioencefálico grave, lesão na medula espinhal, intoxicação grave ou necessidade de sedação ou anestesia)
A laparotomia de rotina não é indicada em pacientes hemodinamicamente estáveis com:
Ferimentos por facada no abdome, sem sinais de peritonite ou desconforto abdominal difuso (distante do local do ferimento) em centros com experiência cirúrgica
Ferimentos abdominais por arma de fogo se os ferimentos forem tangenciais e não houver sinais peritoneais
Lesão penetrante isolada no quadrante superior direito com sinais vitais estáveis, exame confiável e desconforto abdominal mínimo ou ausente.
Considerar uma TC abdominopélvica nos pacientes inicialmente tratados de forma não operatória
As lacerações diafragmáticas e a penetração peritoneal podem ser avaliadas por uma laparoscopia diagnóstica
Exames físicos em série podem detectar lesões significativas de forma confiável se realizados por médicos experientes e pela mesma equipe
A maioria dos pacientes tratados de forma não operatória pode receber alta após 24 horas de observação se o exame abdominal for confiável e eles apresentarem mínimo ou nenhum desconforto abdominal.
Diagnóstico falho ou tardio de lesão de órgão intra-abdominal
Lesões no baço, fígado e vasculatura abdominal
Hemorragia intra-abdominal significativa e instabilidade hemodinâmica podem resultar de lesões abdominais vasculares, esplênicas e hepáticas. Um exame FAST e um TC abdominal com contraste têm funções importantes no diagnóstico dessas lesões e devem ser iniciadas imediatamente quando houver suspeita dessas lesões.
Lesão de pâncreas
O diagnóstico de lesões pancreáticas é notoriamente difícil em decorrência da localização retroperitoneal do pâncreas, resultando no atraso do desenvolvimento de sinais e sintomas. Uma dor abdominal vaga irradiada para as costas e o desconforto abdominal geralmente só surgem algumas horas após o evento traumático. A TC abdominal é fundamental para a elaboração do diagnóstico, já que a amilase e a lipase séricas podem se elevar somente mais tarde. A colangiopancreatografia por ressonância magnética é recomendada para descartar definitivamente as lesões ductais e parenquimatosas do pâncreas.[8]
Lesão diafragmática
Lesões diafragmáticas não detectadas estão associadas a significativa morbidade, decorrente de hérnia e estrangulamento das vísceras abdominais. Existe uma alta incidência de lesão diafragmática no traumatismo toracoabdominal penetrante e no trauma abdominal contuso. O paciente pode se queixar de dor torácica, dor abdominal ou dispneia. Pode ocorrer instabilidade hemodinâmica quando o paciente está em decúbito dorsal. Tipicamente os murmúrios vesiculares estão diminuídos no lado afetado, com ruídos hidroaéreos audíveis sobre aquilo que seria normalmente os campos pulmonares. A TC toracoabdominal é um bom exame para diagnosticar lesões diafragmáticas relacionadas a traumatismo contuso, mas a laparoscopia é melhor para detectar lesões diafragmáticas relacionadas a traumatismo penetrante.
Lesões de estômago e intestino delgado
Morbidade e mortalidade significativas acompanham falha ou atraso no diagnóstico de lesão no intestino delgado. Os pacientes geralmente não têm sinais de peritonite no período inicial e a lesão no intestino delgado pode não ser evidente. Isso pode ocorrer no contexto de trauma abdominal contuso, onde não há suspeita de lesão no intestino delgado, ou quando uma lesão por arma branca na parte anterior do abdome é mal diagnosticada, como não tendo penetrado na fáscia abdominal posterior. A lesão no estômago geralmente resulta em queimação epigástrica de início rápido, seguida por rigidez e sensibilidade de efeito rebote. Classicamente, pneumoperitônio é observado na radiografia torácica ortostática com perfuração de uma víscera oca, embora isto nem sempre seja visível, e o diagnóstico também pode requerer TC abdominal e lavagem peritoneal diagnóstica (LPD), juntamente com a avaliação cuidadosa dos achados clínicos e laboratoriais.
Lesão mesentérica
Existe um alto índice de diagnóstico tardio de lesão mesentérica após trauma abdominal contuso, já que os pacientes podem estar assintomáticos inicialmente e o exame de TC apresenta um alto índice de falso-negativos. O diagnóstico tardio pode ocasionar isquemia intestinal. É importante manter um alto nível de suspeita clínica, juntamente com o exame FAST e TC abdominal, para assegurar que o estabelecimento do diagnóstico.
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