Abordagem

A abordagem de cuidados para os pacientes com lesão crônica da medula espinhal (LME) compreende o manejo das complicações secundárias, identificação da progressão da patologia espinhal, e reabilitação contínua. O objetivo é minimizar complicações adicionais e maximizar a independência funcional. Devido à amplitude e à complexidade dos problemas clínicos e riscos após a LME, é comum que múltiplas especialidades médicas façam parte dos cuidados multidisciplinares do paciente; elas podem incluir a urologia, a nefrologia, a ortopedia, a endocrinologia, a cardiologia e a psiquiatria.[49]

Intervenção cirúrgica para deficit neurológico progressivo

O déficit neurológico progressivo não está necessariamente relacionado com a LME original - ele pode indicar compressão da medula por metástases, tumores primários na medula espinhal, hematoma extradural ou abscesso, ou prolapso do disco intervertebral, e requer investigação. Se qualquer uma dessas doenças for diagnosticada, será necessária descompressão cirúrgica e estabilização da coluna espinhal comprometida.[15] Os pacientes precisarão ter sua função neurológica reavaliada pós-cirurgia e precisarão de reabilitação, se houver deficit neurológico residual.

Se o deficit neurológico progressivo indicar isquemia secundária ou inflamação seguida de lesão aguda, não haverá necessidade de cirurgia.

Intervenções terapêuticas

Muitas intervenções iniciadas após a LME aguda são contínuas para os pacientes com LME crônica. Houve uma mudança em relação ao papel da terapia no contexto da paralisia relacionada à LME. Embora tradicionalmente a terapia tenha enfatizado abordagens compensatórias, com foco no fortalecimento e na mudança de desempenho da maioria das funções para os músculos não afetados acima do nível da lesão, as novas terapias baseadas em atividades têm como objetivo otimizar a função neurológica por meio de intervenções neuroplásticas.[50][51]

O objetivo de qualquer programa de reabilitação para paralisia relacionada à LME é maximizar o funcionamento no dia a dia para alcançar níveis similares aos de antes da lesão, por meio de abordagens compensatórias e restaurativas. As abordagens compensatórias envolvem a maximização da força e da funcionalidade das partes intactas e não afetadas do corpo, enquanto as abordagens restaurativas buscam melhorar a mobilidade e as atividades diárias ao otimizar a recuperação neurológica.[51][52][53][54]

A fisioterapia é usada para manter a amplitude de movimento (ADM) e a mobilidade das articulações. Isso estimula a circulação e tem o objetivo de prevenir deformidades, contraturas musculares e de articulações secundárias, e a osteoporose.[55] Terapias baseadas em atividades podem promover a recuperação neurológica e, assim, melhorar a função sensório-motora e autonômica.[56][57][58][59][60]

Os componentes específicos incluem:

  • Mobilidade e transferências: são ensinadas técnicas para facilitar mudanças de posição para aliviar a pressão, vestir-se, atividades diárias de autocuidado, sono e transferência para e da cadeira de rodas. São explorados e ensinados diferentes mecanismos para se sentar, além de suportes e métodos para se levantar da posição supina para a posição ereta.[61]

  • Mobilidade em cadeira de rodas: o uso efetivo de cadeiras de rodas motorizadas ou manuais requer treinamento. Há várias opções disponíveis, e os controles podem ser personalizados com base no nível de funcionalidade do paciente. Controles para o queixo, a boca e as mãos estão disponíveis para as cadeiras de rodas motorizadas; a tecnologia assistida por motor pode ser usada para melhorar a habilidade de navegar por diferentes espaços usando cadeiras de rodas manuais.[62][63] Técnicas avançadas de manobra podem ser ensinadas para permitir que os pacientes se virem em locais apertados e subam e desçam rampas, ladeiras e meios-fios.

  • Caminhar: há várias intervenções que podem ser usadas para possibilitar que um paciente com paralisia relacionada à LME pratique a marcha, mas o estado neurológico é o principal preditor da habilidade do paciente de andar de maneira independente. Os pacientes com pelo menos uma ADM total dos membros inferiores com gravidade eliminada têm maior probabilidade de conseguir andar com auxílio. O treinamento locomotor usa intervenções como andar em uma esteira com o peso corporal sendo sustentado ou a caminhada assistida por robô.[64][65] Órteses para suporte das articulações ou órteses de marcha recíproca podem ser usadas para auxílio da deambulação. Nos pacientes com comprometimento motor mais grave, pode ser possível ficar em pé com uma mesa inclinável, suportes, cadeiras de rodas verticais ou barras paralelas. Andar pode ser difícil quando há paralisia concomitante dos membros superiores, falta de controle da pelve, perda de propriocepção, obesidade, contratura da articulação ou espasticidade.[54][66]

  • Função das mãos: o objetivo é melhorar a função usando intervenções neurorrestaurativas e/ou compensatórias.[67][68] O modelo reabilitador compensatório se baseia na função disponível usando treinamento e órteses para maximizar a destreza. As talas mantêm as articulações em posições funcionais e podem ser adaptadas, dependendo da função exigida. A terapia regular das mãos pode ser realizada fora da tala para se manter a flexibilidade e a ADM passiva total. O efeito de tenodese (flexão passiva do dedo em resposta à extensão do punho) pode ser ensinado para alguns pacientes para permitir que eles façam os movimentos básicos de pinça, garra e pegada de 3 pontos. O modelo de terapia baseado em atividades utiliza treinamento específico para cada tarefa e a prática em massa para melhorar a função dos membros superiores.[69][70] Reconstruções cirúrgicas usando artrodese, tenodese e transferências de tendões e de nervos podem ser consideradas nos pacientes aptos.

  • Exercícios: uma variedade de intervenções com exercícios, incluindo ADM passiva, fortalecimento e condicionamento, estímulo elétrico funcional e exercícios de resistência eletricamente estimulada podem melhorar a função arterial e auxiliar a neurorrecuperação em pacientes com LME.[71][72][73]

Cuidados de suporte

Função respiratória

Manter uma boa função respiratória é vital. Técnicas regulares de limpeza das vias aéreas e avaliação clínica e monitoramento contínuo da função pulmonar são recomendados para garantir a limpeza adequada das vias aéreas.[74] Uma alteração regular na posição e postura e uso regular de tosse assistida e exercícios regulares de respiração (espirometria incentivada) são úteis na prevenção de problemas respiratórios secundários.[75] Nos pacientes que necessitam de suporte ventilatório contínuo, as abordagens não invasivas parecem estar associadas a menos complicações que a ventilação invasiva.[74] O treinamento de resistência dos músculos inspiratórios tem um efeito de curto prazo positivo sobre a função dos músculos inspiratórios nos pacientes com LME que apresentam função pulmonar comprometida.[76]

Úlceras por pressão

A úlcera por pressão tipicamente ocorre abaixo do sacro (posição supina), na tuberosidade isquiática (sentado) ou nos trocânteres (deitado de lado). Elas são evitadas por cuidados de enfermagem adequados, mudanças regulares na posição, acolchoamento das protuberâncias, manutenção da limpeza e verificação regular da pele. O tratamento cirúrgico é necessário na presença de tecido necrótico.[77] Consulte Úlceras por pressão.

Prevenção do tromboembolismo venoso

Os pacientes com risco aumentado de trombose (por exemplo, imobilizados para repouso no leito ou internados por afecção clínica ou cirurgia) devem receber profilaxia para prevenir o tromboembolismo venoso e uma possível embolia pulmonar.[78] A profilaxia farmacológica deve ser usada a menos que seja contraindicada; medidas não farmacológicas (por exemplo, meias de compressão graduada, dispositivos de compressão pneumática intermitente) podem ser usadas para os pacientes com alto risco de sangramento. Consulte Profilaxia do tromboembolismo venoso.

Manejo da bexiga

A maioria dos pacientes com LME apresenta comprometimento da função vesical, seja no armazenamento, na evacuação ou ambos.[79] A disfunção neurogênica do trato urinário inferior pode ser caracterizada como do tipo neurônio motor superior, neurônio motor inferior ou mista.[80][81]

O método de manejo preferido é o autocateterismo intermitente. O uso de um cateter de demora com um sistema de coleta externa também pode ser considerado; no entanto, isso aumenta os riscos de contratura e infecção urinárias. É importante que o método usado mantenha o sistema de baixa pressão, impeça a hiperdistensão da bexiga e garanta o esvaziamento completo.

Estratégias de tratamento podem ser desenvolvidas com base nos estudos da bexiga (ultrassonografia pós-miccional, avaliações urodinâmicas e cistouretrografia miccional).[82][83] O tratamento farmacológico tem o objetivo de otimizar o armazenamento e a eliminação com o uso de agentes que reduzem a hiper-reflexia do músculo detrusor, melhoram a complacência vesical e abordam a dissinergia detrusor-esfincteriana (por exemplo, anticolinérgicos, beta-agonistas, alfabloqueadores, injeção de toxina botulínica e, às vezes, agentes colinérgicos).[84]

Manejo do intestino

A constipação é o problema mais comum associado à LME crônica, e pode causar impactação e incontinência por transbordamento, se não for adequadamente tratada. Um programa de manejo intestinal deve ser criado e personalizado para cada paciente.[85][86][87]

Os principais componentes do programa incluem:

  • Dieta alimentar: consumo de uma dieta balanceada, incluindo alimentos fibrosos e estimulantes, com consumo de >2 litros/dia de fluidos.

  • Rotina regular: consumir refeições e tentar evacuar nas mesmas horas todos os dias; usar o mesmo local para evacuar.

  • Manobras físicas e posicionamento: incluem estímulo do reflexo gastrocólico por um fator desencadeante alimentar quente, massagem abdominal e atividade física para promover a evacuação. O paciente deve sentar-se em uma cadeira sanitária ou um vaso sanitário, se possível.

  • Fatores desencadeantes locais para a defecação, como estímulo digital, supositório ou evacuação manual.

  • Tratamentos farmacológicos: os amaciantes de fezes são preferidos. Os laxantes estimulantes ou osmóticos serão indicados somente se a constipação persistir apesar da otimização de todos os outros componentes do programa de manejo da evacuação. A obstrução intestinal deve ser excluída antes da administração de laxativos.

Manejo da dor

A dor nociceptiva é tratável por fisioterapia e analgesia simples.[88]

A dor neuropática é de difícil tratamento.[89][90]​ Os agentes de primeira linha são os anticonvulsivantes neuroestabilizadores (por exemplo, gabapentina, pregabalina), inibidores da recaptação de serotonina-noradrenalina (por exemplo, duloxetina) e antidepressivos tricíclicos, como a amitriptilina.[91][92][93]​ Os analgésicos opioides, como tramadol ou oxicodona, podem ser considerados como último recurso, uma vez que outras opções tenham sido tentadas, mas somente se os benefícios esperados superarem os riscos e após uma discussão completa com o paciente.[94][95]​​[96]​ As terapias de neuromodulação para o tratamento da dor, como estimulação elétrica transcutânea, estimulação da medula espinhal e estimulação cerebral, têm desfechos mistos.[97][98][99]​ Os pacientes com compressão das raízes nervosas devem ser considerados para descompressão cirúrgica.

A eficácia das intervenções psicológicas no tratamento da dor neuropática crônica não foi suficientemente estudada.

Manejo da espasticidade

O manejo da espasticidade pode envolver agentes farmacológicos (por exemplo, baclofeno ou tizanidina por via oral; alguns medicamentos para dor neuropática, como gabapentina; medicamentos dopaminérgicos, como levodopa/carbidopa; quimiodenervação com toxina botulínica ou fenol/álcool; baclofeno intratecal) e procedimentos cirúrgicos (alívio da contratura ortopédica; transferência de nervos; rizotomia dorsal).[49] As evidências de efetividade das intervenções não farmacológicas (como estimulação elétrica neuromuscular, alongamento, imobilização, estimulação magnética repetitiva, estimulação magnética transcraniana, estimulação transcraniana por corrente direta, terapia de vibração) são limitadas.[100]

Manejo da saúde óssea

A perda óssea começa logo após o início da paralisia, mas é mais pronunciada nos primeiros 12 meses e continua por anos após a LME.[101] A avaliação da densidade mineral óssea deve ser feita assim que o paciente estiver clinicamente estável após a paralisia e deve ser repetida depois de, pelo menos, 12 meses de terapia medicamentosa e, depois, a intervalos de 1 a 2 anos.[47]

A baixa densidade óssea e a osteoporose secundária associadas com a paralisia relacionada à LME causam alta incidência de fraturas de baixo impacto, que costumam resultar em hospitalizações.[102][103] Vários medicamentos comumente prescritos para pacientes com LME (antidepressivos, anticonvulsivantes, opioides, inibidores da bomba de prótons, anticoagulantes) podem ter um efeito negativo sobre a densidade óssea.[104]

Nenhuma intervenção terapêutica demonstrou reduzir o risco de fraturas, mas a deambulação, a posição ortostática e a estimulação elétrica podem aumentar a densidade mineral óssea em pacientes com LME.[48] Há evidências de que os bifosfonatos, os anticorpos monoclonais anti-RANKL (por exemplo, denosumabe) e a teriparatida (análogo do paratormônio) podem aumentar a densidade óssea da coluna, do quadril e do joelho em pacientes com LME.[48]

Manejo da disreflexia autonômica

A disreflexia autonômica pode ocorrer em pacientes com uma lesão que afeta T6 ou superior.[105][106][107] É provocada por uma resposta autônoma excessiva aos estímulos abaixo do nível da lesão, como impactação fecal ou cateter bloqueado.

A abordagem da causa subjacente é o tratamento de primeira linha. A distensão vesical deve ser excluída primeiro. Se o paciente tiver um cateter, deve-se verificar se a tubulação está bloqueada ou dobrada e, se necessário, ele deverá ser substituído. Se não houver cateter, mas houver sinais clínicos de retenção urinária, o cateterismo é indicado. Se não houver distensão vesical, um exame retal deverá ser realizado para se verificar e remover a impactação fecal retal. As úlceras por pressão ou unhas encravadas são causas mais raras.

Se os sintomas persistirem, ou se nenhuma causa for identificada, os pacientes deverão ser tratados com nifedipino ou nitroglicerina sublinguais para diminuir a pressão arterial.[105][108] Se a resposta permanecer inadequada após 2 doses, um agente hipotensor intravenoso (por exemplo, hidralazina, diazóxido ou nitroprussiato) deve ser administrado.[108][109][110][111] A pressão arterial deve ser monitorada regularmente, e todos os esforços devem ser mantidos para encontrar a causa subjacente.

Manejo de comorbidades psicológicas

Os pacientes com LME com rastreamento positivo para algum transtorno psicológico ou transtorno relacionado a uso de substâncias devem ser encaminhados a um profissional de saúde mental para avaliações adicionais e início do tratamento, se indicado. Devem ser consideradas intervenções farmacológicas e/ou não farmacológicas, e as decisões relativas ao tratamento devem se basear em considerações clínicas e nas preferências do paciente.[41]

Manejo da disfunção sexual, fertilidade, gravidez e nascimento

Os pacientes com disfunção sexual devem receber informações e tratamentos não farmacológicos e farmacológicos, conforme a necessidade.[112]

Devem ser oferecidos tratamentos de fertilidade assistida, se necessário.[38][39]

A gestação, o trabalho de parto e o parto para pacientes do sexo feminino que têm LME requerem cuidados especializados de uma equipe multidisciplinar. As pacientes que considerarem engravidar devem passar por uma avaliação pré-gestação. A disreflexia autonômica pode mimetizar a pré-eclâmpsia, e o trabalho de parto pode desencadear disreflexia autonômica grave; a anestesia neuraxial é preferível para reduzir o risco de disreflexia autonômica.​ As mulheres com LME podem ter parto vaginal. Para o parto cesáreo, a anestesia espinhal ou peridural é preferível. Os médicos devem estar cientes de que os pacientes com LME podem apresentar retardos na cicatrização de feridas.[113]

O uso deste conteúdo está sujeito ao nosso aviso legal