Abordagem
O kwashiorkor tem, essencialmente, um diagnóstico clínico; não existe um teste diagnóstico específico para a doença. Edema é a característica que define a doença. Uma história de residência em um ambiente de pobreza crônica com insegurança alimentar deve alertar o médico para essa possibilidade. As crianças entre 1 e 3 anos são as que apresentam o risco mais elevado. A disponibilidade dos testes determinará que investigações podem ser realizadas, pois a doença é encontrada predominantemente nos países em desenvolvimento.
História
Uma história alimentar com dieta exclusivamente à base de um único cereal, com a inclusão de alimentos de origem animal menos de uma vez por semana, deve levantar a suspeita de kwashiorkor. Dietas à base de milho, mandioca e arroz são as mais comumente associadas ao kwashiorkor.
A cessação do aleitamento materno poucos meses antes da apresentação da doença é um achado comum, classicamente devido ao nascimento de um irmão mais novo. Pode haver uma história precedente de diarreia ou sarampo. A criança pode se queixar de sintomas oculares, como fotofobia ou irritação dos olhos, que pode ser um sinal de xeroftalmia. Uma baixa condição socioeconômica pode contribuir para a insegurança alimentar e o desenvolvimento de kwashiorkor.
O edema do kwashiorkor começa nos pés e se desenvolve ao longo de alguns dias. Caso não seja tratado, ele evolui para edema crescente com deterioração clínica ou, se for leve, pode remitir sem tratamento.
A recusa a alimentar-se com a comida servida à boca com uma colher e a presença de letargia geral estão frequentemente associadas a uma infecção concomitante ou privação materna.[Figure caption and citation for the preceding image starts]: Refugiado da guerra civil nigeriana mostrando manifestações de kwashiorkor (pés edemaciados, pele fina e brilhante sobre os joelhos).De Public Health Image Library do CDC/ Dr. Lyle Conrad, 1968 [Citation ends].
Antropometria
Medições precisas, por meio de gráficos de crescimento correlacionando idade e sexo, são obrigatórias para um diagnóstico correto. Deve-se usar de cautela ao calcular a altura e o peso com base na idade cronológica real da criança. Crianças com >2 anos de idade e >85 cm de altura que podem ficar de pé podem ter a altura medida. Caso contrário, pode ser medido o comprimento. O crescimento de lactentes prematuros deve ser traçado em gráficos concebidos para levar em conta a sua idade gestacional (isto é, até 24 meses para peso, 40 meses para comprimento e 18 meses para perímetro cefálico). As medições de peso, altura (ou comprimento) e perímetro braquial podem ser usadas para determinar a gravidade da desnutrição e confirmar o diagnóstico de kwashiorkor. As classificações a seguir são úteis:
Classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de desnutrição em crianças de 6 a 59 meses de idade[1]
Desnutrição moderada
Ausência de edema simétrico
Um Z-score de peso/altura (comprimento) entre -2 e -3 ou perímetro braquial de 11.5 cm a 12.4 cm define perda moderada (também chamada de desnutrição aguda moderada)
Z-score de altura (comprimento)/idade entre -2 e -3 define desnutrição moderada.
Desnutrição grave (inclui kwashiorkor, uma forma de desnutrição aguda grave)
Edemas simétricos definem o kwashiorkor, independentemente de outros parâmetros antropométricos
Um Z-score de peso/altura <-3 ou perímetro braquial <11.5 cm define emaciação grave (também conhecida como marasmo, uma forma de desnutrição aguda grave)
Z-score de altura/idade <-3 define desnutrição grave.
O escore de desvio-padrão (ou Z-score) é definido como o desvio do valor da mediana da população de referência, dividido pelo desvio padrão da população de referência.[2]
Exame
O objetivo do exame físico é determinar a gravidade e presença de complicações associadas. Também é importante descartar causas alternativas de edema.
O edema associado a kwashiorkor é bilateral, depressível e dependente. Edema facial predominante sugere nefropatia. A ascite não é uma característica típica de kwashiorkor. O edema é testado aplicando-se pressão por 3 segundos, causando uma depressão visível persistente na pele. O edema é classificado como + se estiver confinado aos pés e à parte anterior inferior das canelas; ++ se também se estender às mãos ou antebraços; e +++ se for generalizado, de modo a incluir pés, mãos, braços e face.
Se houver recurso, deve-se verificar a temperatura. A presença de hipotermia em crianças com kwashiorkor não é comum. Pode estar presente febre com infecção concomitante. As fontes comuns incluem sepse gastrointestinal, torácica e urinária. Entretanto, crianças desnutridas podem não apresentar febre na presença de infecção.
Deve-se registrar o nível de hidratação. A desidratação é superestimada e diagnosticada excessivamente em crianças desnutridas. Entretanto, em casos graves, a frequência de pulso pode ser rápida com diminuição do débito urinário; a criança pode estar com sede e letárgica, a dobra da pele retorna menos lentamente após ser beliscada, ausência de lágrimas e boca e olhos secos.
O estado mental deve ser avaliado e registrado. A criança pode ficar irritada, letárgica, sonolenta ou apresentar diminuição do nível de consciência e, por conseguinte, necessitar de cuidados iniciais em uma instituição. O apetite da criança para alimentos terapêuticos deve ser avaliado.
Classicamente, observa-se dermatose como áreas de hiperpigmentação, começando como manchas que se tornam duras e escamosas e, em seguida, se fundem, seguidas por descamação e rachadura da pele. A dermatose também pode se apresentar como pele seca, fina, brilhante ou enrugada decorrente de atrofia das camadas basais da epiderme com hiperceratose. Podem aparecer ulcerações nas regiões genital e perianal, nos sulcos corporais e em superfícies expostas.
Infecção é comum em crianças desnutridas com kwashiorkor e podem existir sinais de sepse gastrointestinal, respiratória ou urinária com febre.[40] Placas brancas de cândida são comumente observadas na língua ou no palato duro, particularmente na presença de infecção por vírus da imunodeficiência humana (HIV) subjacente. Mesmo sem sinais específicos de infecção, todas as crianças com kwashiorkor devem ser tratadas empiricamente para infecção bacteriana, atentando-se à presença de outras infecções, como a malária.
Os cabelos podem ser finos e esparsos, caindo com facilidade. O cabelo preto pode perder pigmentação e tornar-se alaranjado ou marrom-avermelhado e podem estar presentes aspectos de anemia, como conjuntiva e membranas mucosas pálidas.
A xeroftalmia pode acarretar olhos secos com espessamento da conjuntiva e, por fim, ulceração corneana e cegueira, caso não seja tratada.
Alguns sinais físicos são sugestivos de uma causa alternativa de edema, como a presença de icterícia, que pode ser decorrente de insuficiência hepática ou de anemia hemolítica. A ausculta do coração pode identificar um ritmo de galope por causa de insuficiência cardíaca ou sopro cardíaco com patologia valvar.[41] A linfadenopatia também pode sugerir uma causa alternativa ou subjacente, como linfoma, tuberculose ou sarcoma de Kaposi associado ao HIV.
Investigação diagnóstica
O diagnóstico de kwashiorkor é clínico. Geralmente, investigações específicas são desnecessárias para a maioria das crianças. As investigações são limitadas pelos recursos locais, já que o kwashiorkor é predominantemente uma doença do mundo em desenvolvimento, e só são necessárias para procurar doenças subjacentes coexistentes, como infecção, HIV ou tuberculose (TB), para descartar outros diferenciais de edema, e para a avaliação das complicações.
Nível de hemoglobina e volume de concentrado celular: crianças desnutridas frequentemente têm hemoglobina baixa, normalmente 80 a 100 g/L (8 a 10 g/dL), mas a presença de anemia grave pode também ser responsável por edema sem kwashiorkor.
Glicose sanguínea para diagnosticar hipoglicemia: definida como glicose sanguínea <3 mmol/L (<54 mg/dL).
Os eletrólitos séricos podem estar inconsistentemente anormais. Ocorre uma profunda redução no nível total de potássio do corpo para ≤35 mmol/kg (o normal é 44 mmol/kg).[42] Isso corresponde à perda de potássio intracelular. O tratamento deve ser baseado na previsão do estado eletrolítico do corpo inteiro e não nos resultados dos exames de sangue, pois podem ocorrer hipocalemia e hipofosfatemia profundas com risco de vida, com a realimentação em casos graves. Embora ocorra hiponatremia, o nível total de sódio do corpo é elevado.[43]
Os níveis séricos de proteínas e de albumina geralmente estão normais ou baixos no kwashiorkor. A presença de proteínas e albumina séricas muito baixas sugere um diagnóstico alternativo, como nefrite, enteropatia perdedora de proteínas ou queimaduras. Se a proteína sérica estiver elevada, deve-se considerar a possibilidade de infecção por HIV.
Radiografia torácica e teste cutâneo de TB, em caso de suspeita de TB subjacente. A radiografia torácica pode revelar cavitação na zona superior e linfadenopatia. Pneumonia é menos óbvia na radiografia torácica de crianças desnutridas. O teste cutâneo de TB pode não ser confiável em áreas endêmicas; se houver recursos disponíveis, pode-se considerar a realização de exames específicos para TB, como culturas ou à base de reação em cadeia da polimerase.
Culturas de sangue e urina se houver suspeita de sepse; os resultados podem ajudar a ajustar a antibioticoterapia.
Coproculturas podem identificar patógenos gastrointestinais se a diarreia for uma característica predominante.
O rastreamento de malária nem sempre é exigido, mas é útil em áreas endêmicas ou na presença de anemia grave.
Deve haver suspeita de HIV em áreas com prevalência de HIV e quando o kwashiorkor se apresentar fora da faixa etária normal (por exemplo, em bebês ainda em fase de amamentação ou em crianças com mais de 5 anos), mas os testes são aconselháveis somente depois de discussão e aconselhamento com os familiares. Em geral, todas as crianças desnutridas devem realizar o exame para HIV em áreas endêmicas, se os recursos assim o permitirem e se for viável.
Tira reagente para exame de urina para verificar a presença de proteinúria, hematúria e síndrome nefrótica ou nefrite como causa do edema.
A ecocardiografia não é rotineiramente executada; porém, quando disponível, pequenos derrames pericárdicos podem ajudar a diferenciar entre o kwashiorkor e as causas cardíacas do edema, em caso de incerteza diagnóstica.
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