Abordagem

Independentemente da etiologia, o tratamento inicial deve ser direcionado para restaurar um volume intravascular suficiente para proporcionar uma perfusão orgânica adequada. A restauração bem-sucedida do volume intravascular promove a estabilidade hemodinâmica e possibilita a identificação e o tratamento da causa subjacente. A restauração inadequada do volume do líquido intravascular pode acarretar dano a órgãos-alvo, falência de múltiplos órgãos e morte. Embora haja uma continuidade entre a depleção de volume leve a moderada e a grave, é pragmático dividir os pacientes artificialmente em um desses dois grupos para determinar o tratamento. A maior parte das depleções de volume em pacientes pediátricos é causada por vômitos e diarreia decorrentes de gastroenterite. Nesses casos, o tratamento deve ser voltado para a diminuição das náuseas e vômitos para prevenir a desidratação grave e as idas desnecessárias ao hospital.

Indicadores comumente utilizados para determinar o nível de depleção de volume

Os seguintes indicadores podem ser usados como um guia para a avaliação do grau de depleção de volume resultante de todas as causas de depleção de volume discutidas nas seções a seguir.

Depleção de volume leve a moderada

  • Estado mental normal preservado

  • Estabilidade hemodinâmica

  • Sinais vitais ligeiramente alterados (por exemplo, grau discreto de taquicardia)

Depleção de volume grave

  • Estado mental alterado

  • Instabilidade hemodinâmica

Perdas entéricas: com depleção de volume leve a moderada

As perdas entéricas são, em sua maioria, decorrentes de gastroenterite aguda. A reposição enteral do deficit de volume de líquidos e das perdas contínuas é adequada para pacientes com desidratação leve ou moderada.[27] As soluções de reidratação oral (SROs) preparadas comercialmente são adequadas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma SRO hipotônica:

  • Contendo 75 mEq/L de sódio

  • Contendo 75 mmol/L de glicose

  • Com uma osmolaridade total de 245 mOsm/L

As SROs disponíveis comercialmente têm formulação próxima à da SRO recomendada pela OMS. Uma metanálise comparou a eficácia e a segurança de SRO relativamente hiperosmolar (≥310 mOsm/L) com a formulação padrão (≤270 mOsm/L) para o tratamento de adultos e crianças com desidratação decorrente de cólera, que é uma doença diarreica secretora grave associada a perda de eletrólitos significativa.[28] A hiponatremia bioquímica foi mais comum nos pacientes tratados com a formulação padrão, mas se observou nenhum diferença em outros desfechos, e as análises que separam crianças e adultos não revelaram tendências óbvias. [ Cochrane Clinical Answers logo ] Uma revisão sistemática comparou a SRO de baixa osmolaridade com uma solução desenvolvida para crianças desidratadas que apresentam deficiência nutricional moderada a grave. Não foi encontrada nenhuma diferença clínica significativa, mas deve-se observar que esses pacientes apresentam alto risco de desequilíbrio eletrolítico e sobrecarga hídrica com as terapias de reidratação, e estão particularmente em risco de hipocalemia devido ao baixo conteúdo de potássio de ambas as SRO.[29]​ ​O objetivo da terapia de reidratação oral é repor os deficits e, depois, fornecer líquido suficiente para repor as perdas continuadas. Os volumes pequenos e frequentes, com aumento gradual de acordo com a tolerância, são preferenciais. Uma diretriz geral é administrar 50-100 mL/kg de SRO ao longo de 2-4 horas.[13][17]​ A terapia de reidratação oral às vezes é substituída por tratamento intravenoso. As evidências clínicas não dão suporte a essa prática, a menos que existam contraindicações à terapia de reidratação oral.[12][30]

É importante notar que certos líquidos, como bebidas carbonatadas, suco de frutas ou água pura, não devem ser usados. Os lactentes devem continuar a ser amamentados além de receber SRO. O "repouso intestinal" não tem função na gastroenterite. Dietas adequadas à idade devem ser instituídas no início da evolução de uma depleção de volume leve ou moderada associada à gastroenterite. Alimentos com alto conteúdo de açúcar e carboidratos devem ser evitados.

Crianças com depleção de volume decorrente de gastroenterite infecciosa aguda são mais propensas a apresentar vômitos. Isso pode ser um impedimento significativo para a reidratação enteral. Antieméticos não são comumente usados em pacientes pediátricos para o tratamento de vômitos relacionados à gastroenterite aguda. Entretanto, antieméticos são ocasionalmente usados em pacientes que estejam clinicamente estáveis, mas que são incapazes de receber hidratação oral.[31][32] O uso de ondansetrona dissolúvel nessa situação clínica foi estudado em um grande ensaio clínico randomizado e controlado.[32] Embora outros antieméticos sejam, às vezes, usados em pacientes pediátricos, eles geralmente não são fundamentados na literatura.

Não existe uma função definida para o uso de agentes antidiarreicos no tratamento de depleção de volume em paciente pediátrico. Nos países em desenvolvimento, foi mostrado que a suplementação precoce de zinco é benéfica na prevenção e na mitigação da depleção de volume associada à gastroenterite aguda.[33] Não existem evidências convincentes para o uso de suplementação de zinco no tratamento imediato da depleção de volume.

Caso a criança não deseje ou não seja capaz de ingerir líquidos, a administração nasogástrica de solução de reidratação oral (SRO) é uma alternativa eficaz à via oral, além de ser rápida e eficaz para crianças com depleção de volume leve a moderada.[34] Ela pode inclusive ser tolerada por muitas crianças que apresentam vômitos. As vantagens potenciais da via nasogástrica incluem o início mais rápido do tratamento, a facilidade da colocação da sonda nasogástrica e o custo mais baixo em comparação com a colocação de cateter intravenoso. Desvantagens potenciais incluem o risco de vômitos contínuos, íleo paralítico, deslocamento e aspiração. É interessante observar que os pais ficam igualmente satisfeitos com o tratamento nasogástrico e o intravenoso.[34] A via intravenosa é preferida em condições de instabilidade hemodinâmica secundária à perda de volume ou quando o volume da reidratação enteral necessário para reestabelecer a euvolemia não é tolerado pelo paciente durante um período curto de tempo.

Perdas entéricas: depleção de volume grave

A depleção de volume grave é uma emergência médica e deve ser tratada agressivamente. O choque séptico deve ser considerado como um diagnóstico possível, pois pode ser difícil diferenciá-lo da depleção de volume grave devido a outras causas ou por ocorrer simultaneamente. Soluções cristaloides isotônicas (por exemplo, soro fisiológico ou solução de Ringer lactato) são recomendadas para a ressuscitação volêmica inicial em depleção de volume grave.[22][35]​​​​ Em geral, as soluções cristaloides isotônicas são baratas e prontamente disponíveis, não exigem manuseio especial e têm complicações mínimas associadas ao seu uso. Há evidências que dão suporte ao uso de cristaloides sobre coloides para o tratamento do choque, com exceção das perdas hemorrágicas que podem requerer o manejo com protocolos de transfusão maciça. Em geral, os coloides não demonstraram melhorar a sobrevida em comparação com os cristaloides. [ Cochrane Clinical Answers logo ] ​​ A Food and Drug Administration (FDA) recomenda que as soluções que contenham hidroxietilamido (HES) e coloide artificial não sejam usadas, a menos que um tratamento alternativo adequado não esteja disponível.[36] Os produtos de HES estão associados com desfechos adversos, incluindo lesão renal e morte, principalmente nos pacientes em estado crítico e naqueles com sepse.[37] Diante dos sérios riscos para essas populações de pacientes, a European Medicines Agency (EMA) suspendeu a autorização de comercialização das soluções de HES na Europa em 2022.

As diretrizes da Surviving Sepsis Campaign não recomendam o uso de HES ou fluido derivado de gelatina na reanimação de crianças com choque séptico.[22]

Coloides também são menos desejáveis, pois são consideravelmente mais caros que cristaloides.[37][38][39]​​​ Uma revisão sistemática de estudos comparando o uso de cristaloides e coloides para a ressuscitação fluídica em crianças de 1 mês a 12 anos de idade com infecção grave concluiu que as evidências atuais quanto à escolha do fluido nesse grupo de pacientes são fracas, sem força suficiente para que se façam recomendações definitivas.[40] As diretrizes de suporte avançado de vida pediátrico recomendam cristaloides isotônicos (balanceados [por exemplo, solução de Hartmann ou solução de Ringer lactato] ou não balanceados [por exemplo, soro fisiológico]) ou coloides como fluidoterapia inicial para choque hipovolêmico.[41] Com base em dados de adultos, as diretrizes da Surviving Sepsis Campaign pediátrica recomendam o uso de soluções cristaloides balanceadas/tamponadas, em vez de soro fisiológico ou albumina para ressuscitação fluídica inicial, devido ao conteúdo de cloreto no soro fisiológico aumentar a probabilidade de acidose metabólica hiperclorêmica quando administrada em grandes quantidades muitas vezes necessárias para a ressuscitação fluídica completa.[22] Uma revisão sistemática de soro fisiológico versus soluções cristaloides hidrodinâmicas em crianças com diarreia mostrou períodos mais curtos de internação, pH´s finais mais altos e níveis mais altos de bicarbonato naqueles ressuscitados com solução balanceada, mas não foi observada nenhuma diferença na mortalidade, na necessidade de fluido adicional, na quantidade total de fluido, nas alterações nos níveis de sódio, potássio ou creatinina ou nas lesões renais agudas.[42]​ Apesar desses achados, são necessários ensaios clínicos adicionais de ressuscitação fluídica com o uso de soluções balanceadas/tamponadas em crianças.[43]

Se não for possível obter um acesso intravenoso dentro dos primeiros 5 minutos, deve-se estabelecer um acesso intraósseo. Os sítios frequentemente usados são a tíbia proximal e o fêmur distal. Os sítios intravenosos nas crianças maiores são os mesmos que os dos adultos, mas o couro cabeludo e as veias jugulares externas frequentemente são mais acessíveis nos lactentes mais je devem ser considerados. É necessária uma reavaliação frequente do estado mental, do pulso, da temperatura da pele, da frequência cardíaca, da PA, do enchimento capilar e do débito urinário. Se os sintomas não melhorarem após 40-60 mL/kg de cristaloide isotônico (administrado em bolus de 10-20 mL/kg), outras etiologias da apresentação (por exemplo, anafilaxia, hemorragia, intoxicação, disfunção cardiovascular concomitante) devem ser consideradas. No entanto, as crianças que apresentarem choque hipovolêmico podem necessitar de reposição de fluidos adicional antes que o choque seja revertido.[5]​​[44][45]​​ Um ensaio clínico prospectivo de larga escala sobre ressuscitação fluídica em crianças com doença febril grave e perfusão deficiente realizado em áreas pobres em recursos da África Oriental revelou que a administração em bolus de 20-40 mL de solução de albumina a 5% (coloide) ou soro fisiológico a 0.9% (cristaloide) por quilo de peso corporal levou a aumentos da mortalidade a 48 horas e a 4 semanas em comparação com o grupo-controle sem bolus, embora não tenha havido aumento nas incidências de edema pulmonar, pressão intracraniana elevada ou sequelas neurológicas.[46]

A orientação subsequente sobre a ressuscitação fluídica inicial da Surviving Sepsis Campaign pediátrica estratifica o manejo hídrico recomendado de acordo com se a criança está ou não sendo tratada em um centro com disponibilidade de cuidados intensivos:[22]

  • Se uma unidade de cuidados intensivos estiver presente e uma criança apresentar evidências de perfusão anormal após 40-60 mL/kg de fluidos (ou antes, se desenvolver sobrecarga hídrica), o tratamento deve ser escalado para incluir o início de inotrópicos/vasopressores, o que normalmente seria administrado em um ambiente de terapia intensiva com uso de monitoramento hemodinâmico avançado.[44]

  • Se não houver disponibilidade de cuidados intensivos e a criança for normotensa, os fluidos de manutenção devem ser iniciados sem a administração de fluidos em bolus. Se não houver disponibilidade de cuidados intensivos e a criança for hipotensa, recomenda-se a administração de até 40 mL/kg de fluidos em bolus durante a primeira hora, administrados em bolus individuais de 10-20 mL/kg de cada vez e ajustados de acordo com os marcadores clínicos de débito cardíaco. Isso deve ser descontinuado se houver sinais de sobrecarga hídrica.

A consideração cuidadosa das circunstâncias individuais de cada paciente e dos recursos disponíveis deve, portanto, fazer parte da avaliação dos riscos versus os benefícios de diferentes estratégias para reposição volêmica.

Perdas hemorrágicas

A hemorragia geralmente é bastante óbvia como causa da depleção de volume, mas a incidência mais elevada de traumatismo contuso, o tamanho grande dos órgãos internos de uma criança pequena com relação ao tamanho do esqueleto e a incapacidade da criança de comunicar dor localizada são desafios para o reconhecimento de perdas hemorrágicas em crianças. Além disso, um trauma não acidental (abuso físico) frequentemente não é considerado no início da avaliação de uma criança com estado mental alterado ou queixas inespecíficas. O trauma não acidental está frequentemente associado ao sangramento significativo no crânio, nos órgãos internos ou membros.[8]

A depleção de volume decorrente de trauma e a hemorragia deve ser tratada inicialmente com 20 mL/kg de solução cristaloide isotônica.[5][8]​ Isso pode ser repetido até que os sinais de instabilidade hemodinâmica melhorem, tendo-se em mente a potencial necessidade de hemoderivados/transfusão.

Além disso, a hemostasia é essencial para a correção da depleção de volume. Sangramento oculto é mais comum em crianças devido aos padrões de lesão traumática.[8] Trauma oculto deve ser considerado em um lactente ou criança pequena que apresente estado mental alterado e sinais de depleção de volume, e que não responda à administração de cristaloide. TC e ultrassonografia de crânio e abdominal devem ser consideradas.

Nos casos de perdas hemorrágicas significativas, é necessário repor hemoderivados quando o fornecimento de oxigênio adequado aos órgãos vitais não for mantido apenas com cristaloide. Geralmente são administrados 5-10 mL/kg de sangue com prova cruzada. Nos casos de hemorragia ativa associada a instabilidade hemodinâmica, a administração de sangue sem prova cruzada (pacote para trauma) pode ser necessária. É indicada a consulta simultânea com uma equipe especializada em trauma pediátrico. Atingir um nível de hemoglobina superior a 100 g/L (10 mg/dL) melhora os desfechos nas crianças com choque.[24][47]

Pacientes com coagulopatias e perdas contínuas podem exigir a reposição de fatores de coagulação para a hemostasia. Plaquetas e plasma fresco congelado são administrados quando:

  • O sangramento for contínuo

  • A perda sanguínea for maciça

  • O paciente tiver recebido transfusão maciça (50% do volume de sangue total).

Perdas cutâneas: induzidas por exercício ou intermação

Depleção de volume leve a moderada:

  • Perdas de fluidos através da pele intacta raramente causam mais que hipovolemia leve. Entretanto, atletas adolescentes realizando exercícios intensos em ambiente com umidade e temperatura elevadas podem apresentar perdas significativas que, se não forem repostas por hidratação frequente com líquidos adequados, causarão depleção de volume.[16][21]

  • O manejo inicial de pacientes com depleção de volume leve a moderada é a reposição entérica com SRO, como nas perdas entéricas leves a moderadas. Na depleção de volume leve a moderada, devem ser consideradas técnicas de reidratação oral como terapia de primeira linha sempre que possível. A reidratação nasogástrica deve ser considerada antes de se tentar a fluidoterapia intravenosa em pacientes com depleção de volume leve a moderada que não conseguem ingerir líquidos por via oral. Foi mostrado que a reidratação oral é tão eficaz quanto a reidratação intravenosa e que ela está associada a menos complicações.[48][49] O International Liaison Committee on Resuscitation recomenda o uso de qualquer bebida de reidratação prontamente disponível ou água nos primeiros-socorros, e sugere a hidratação com uma bebida com 4% a 9% de carboidratos e eletrólitos como recomendação fraca.[50]

  • Além disso, é importante o controle ambiental. O paciente deve ser transferido para um ambiente com temperatura neutra.

  • Para pacientes que não consigam tolerar a reidratação enteral em virtude de vômitos intratáveis ou de estado mental deprimido, é usado soro fisiológico isotônico por via intravenosa.

  • Em casos de perda cutânea proveniente de sudorese excessiva, o líquido perdido é relativamente hipotônico. Após a restauração do volume intravascular, soluções relativamente hipotônicas (por via oral) podem ser usadas para repor o deficit de água corporal total.

Depleção de volume grave:

  • O tratamento inicial é feito com 20 mL/kg de soro fisiológico intravenoso, repetido conforme necessário para restaurar a hemodinâmica normal.

  • Após o volume intravascular ser restaurado nos casos de perda cutânea por sudorese excessiva, soluções relativamente hipotônicas (por exemplo, soro fisiológico a 0.45%) podem ser usadas para repor o deficit de água corporal total, se indicadas por uma hipernatremia persistente.

  • Sempre que forem administrados fluidos hipotônicos, recomenda-se o monitoramento frequente de eletrólitos para assegurar a detecção de rápidas alterações no sódio sérico.

Perdas cutâneas: queimaduras

As perdas de volume podem ser extremamente elevadas em pacientes com queimaduras significativas, exigindo estabilização hemodinâmica urgente e transferência para centros especializados em queimaduras.[51] Todos os pacientes com queimaduras em mais de 10% da área total da superfície corporal (ATSC) devem ser submetidos a fluidoterapia com soro fisiológico isotônico por via intravenosa. As diretrizes do Advanced Burn Life Support (ABLS) estabelecem que os pacientes pediátricos (12 anos ou menos) com queimaduras não elétricas devem receber 3mL/kg/% da área total de superfície corporal (ATSC) de cristaloide isotônico (idealmente, solução de Ringer lactato) nas primeiras 24 horas. As queimaduras elétricas pediátricas devem receber 4mL/kg/% da área total de superfície corporal (ATSC).[52]​ Metade da totalidade desse volume deve ser administrado durante as primeiras 8 horas, com o restante nas 16 horas seguintes, além da fluidoterapia intravenosa de manutenção.[53] Os fluidos de manutenção devem incluir glicose; 5% de glicose em solução de Ringer lactato são recomendados pelas diretrizes do ABLS. A ressuscitação deve ser ajustada de hora em hora em relação ao débito urinário, com base no peso corporal ideal do paciente. Para as crianças >12 anos de idade, a meta de débito urinário deve ser 0.5 mL/kg/hora ou 30-50 mL/hora e, para as crianças ≤12 anos, a meta de débito urinário deve ser de 1 mL/kg/hora, ou 30 mL/hora se a criança pesar >30 kg.[52]​ As crianças com queimaduras maiores ou que estiverem hemodinamicamente instáveis podem necessitar de fluidoterapia em quantidades superiores a essas. Deve-se considerar consultas com especialistas e transferência para uma unidade de queimaduras para otimização da assistência.

Perdas renais

As perdas renais podem ser primariamente de água (como no diabetes insípido) ou, mais comumente, de água e solutos. A causa mais comum de perda renal é o aumento da diurese osmótica observada em crianças com diabetes mellitus inadequadamente controlado. Muitas crianças apresentam depleção de volume significativa por glicosúria. As crianças com diabetes não diagnosticado previamente, crianças muito pequenas e adolescentes têm maior propensão a apresentarem depleção de volume significativa decorrente de cetoacidose diabética (CAD). A estabilização e reposição imediatas do volume intravascular são mais eficientemente alcançadas com soluções cristaloides isotônicas (por exemplo, soro fisiológico). O tratamento definitivo da hipovolemia profunda decorrente de perdas renais requer o tratamento adequado da doença subjacente.

cetoacidose diabética (CAD):

  • O manejo de uma criança pequena em estado cetoacidótico diabético pode ser complicado por apresentação tardia, novo diagnóstico e subestimação do grau da doença. A alta sensibilidade à insulina pode resultar em hipoglicemia após o tratamento.[9] Os pacientes devem ser estabilizados por meio da administração de soro fisiológico isotônico, seguida por consulta a um endocrinologista pediátrico, um médico especialista em emergência ou em cuidados intensivos.[54] É necessária insulinoterapia orientada por protocolos especializados.

  • A administração de insulina por via subcutânea nas crianças pequenas com CAD, particularmente com um diagnóstico recente de diabetes mellitus, não é aconselhável.

  • Nesses pacientes, a desidratação se deve principalmente à perda renal de água associada à glicosúria. Pode-se estimar que um paciente pediátrico com CAD tenha uma depleção de volume entre 5% a 10% como resultado dessa perda. Uma abordagem razoável é a administração de 10-20 mL/kg de soro fisiológico por via intravenosa ao longo dos primeiros 20-30 minutos, e o deficit de fluidos restante, adicionalmente à necessidade de manutenção com a dose calculada de acordo com o peso, com solução salina a 0.45% ou 0.90% ao longo das 24-48 horas seguintes enquanto se monitora rigorosamente o paciente quanto a sinais de edema cerebral.[9][55][56]​​​​ As lesões cerebrais ocorrem frequentemente e com gravidade variável nas crianças com CAD; no entanto, evidências sugerem que isso se deve à hipoperfusão cerebral e ao estado hiperinflamatório causado pela CAD, e não à administração rápida de fluidos.[9][57]

  • Estudos demonstraram que nem a avaliação clínica nem as análises bioquímicas são altamente acuradas para avaliar a gravidade da desidratação em crianças com CAD, embora uma apresentação nova, ureia elevada e acidose mais grave estejam associadas a uma desidratação mais intensa. Devido à dificuldade de avaliar a gravidade da desidratação, recomenda-se estimar 6% de desidratação nos pacientes diabéticos previamente diagnosticados e 8% de desidratação nos novos pacientes diabéticos com CAD.[58]

  • Quando o volume intravascular for restabelecido, o conteúdo de soro fisiológico dos fluidos pode ser alterado para soro fisiológico a 0.45% para evitar hipernatremia persistente (ou o desenvolvimento de) e/ou acidose metabólica hiperclorêmica.

A depleção de volume por perdas renais não causada por CAD em crianças é menos comum e suas causas incluem diabetes insípido, defeitos de concentração tubular renal e overdose de diuréticos.

Diabetes insípido:

  • Pode ocorrer depleção de volume em crianças com diabetes insípido devido à excreção renal elevada de água livre.

  • Geralmente, a reposição enteral de perdas de água livre é suficiente. Uma vez que as perdas de água são primárias, soluções hipotônicas podem ser usadas.

  • Se os pacientes não forem capazes de tolerar reposição oral, pode ser usada solução hipotônica intravenosa (por exemplo, diluída a 1: 4 em soro fisiológico).

  • Crianças com diabetes insípido diagnosticado também podem receber terapia com desmopressina por via intranasal.

Superdosagem de diuréticos:

  • Pode ser resultante de ingestão acidental em crianças pequenas ou, raramente, de síndrome de Munchausen por procuração.

  • Deve ser tratada de forma similar às perdas entéricas. Os eletrólitos séricos devem ser examinados e quaisquer anormalidades devem ser corrigidas.

Perda para tecidos extravasculares

A depleção de volume decorrente da redistribuição de líquido do espaço intravascular para locais extravasculares é menos comum em crianças do que em adultos. No entanto, pode ocorrer comprometimento hemodinâmico significativo e morte por doenças associadas a extravasamento capilar generalizado (por exemplo, sepse, anafilaxia, síndrome nefrótica, insuficiência cardíaca congestiva) ou perda para o espaço extravascular (por exemplo, ascite, derrames pleurais, hemorragia oculta). O extravasamento capilar pode ser ainda mais exacerbado pela perda de proteínas oncoticamente ativas para o interior do espaço extravascular, promovendo movimento adicional de líquidos através da barreira endotelial rompida. Em crianças isso é mais frequente em sepse ou anafilaxia. Embora tecnicamente isso não seja uma perda de volume corporal total, o espaço intravascular é funcionalmente reduzido. Os sintomas e o manejo são similares aos associados à depleção de volume nas doenças mencionadas anteriormente. Alguns aspectos específicos acerca de sepse e anafilaxia são abordados.

Sepse:

  • A sepse geralmente está associada a elementos de hipovolemia resultante de uma ingestão diminuída, do aumento das perdas insensíveis, de perdas gastrointestinais e de perdas para o terceiro espaço (perda para o espaço extravascular).

  • Nos casos de choque séptico, é fundamental restaurar o volume circulante para garantir uma perfusão adequada dos órgãos-alvo. As diretrizes da Paediatric Surviving Sepsis Campaign recomendam que, se uma unidade de cuidados intensivos estiver disponível, a ressuscitação fluídica inicial deve ser fornecida com fluidos cristaloides isotônicos intravenosos em bolus de 10-20 mL/kg administrados durante a primeira hora até que o paciente tenha reversão do choque (ou seja, frequência cardíaca e PA normais para a idade, enchimento capilar inferior a 2 segundos, estado mental normal e débito urinário adequado).[22] Caso a ressuscitação fluídica resulte em um novo episódio de hepatomegalia ou edema pulmonar, ou caso haja sinais persistentes de choque após administração de 40-60 mL/kg de fluido isotônico, deve-se iniciar a terapia vasoativa.[22]

  • Se uma unidade de cuidados intensivos não estiver disponível e houver hipotensão, as diretrizes da Surviving Sepsis Campaign pediátrica recomendam que até 40 mL/kg de fluídos em bolus (10-20 mL/kg por bolus) devem ser administrados durante a primeira hora e ajustados de acordo com os marcadores clínicos de débito cardíaco. Os fluídos em bolus devem ser descontinuados se surgirem sinais de sobrecarga hídrica. Na ausência de hipotensão, a administração de fluidos em bolus não é recomendada e fluidos de manutenção devem ser iniciados.[22]

  • Após a obtenção de hemoculturas, antibióticos empíricos de amplo espectro, que levam em consideração a suscetibilidade local e os padrões infecciosos, devem ser administrados o mais rápido possível e sempre dentro de 1 hora após o reconhecimento do choque séptico.[22]

  • Esquemas antibióticos comumente usados incluem ampicilina e gentamicina para neonatos e, para crianças mais velhas, cefalosporinas de terceira geração, como ceftriaxona associada à vancomicina. Cobertura adicional para organismos gram-negativos, da espécie Pseudomonas, para patógenos fúngicos e para Staphylococcus aureus resistentes será orientada pela história médica e pelo quadro clínico do paciente.

  • Adicionalmente, poderá ser necessário suporte hemodinâmico com infusão de agentes vasopressores. Não existem evidências adequadas de que qualquer agente vasopressor seja uma escolha superior comparado a outro e uma escolha específica pode ser individualizada.[59]

  • A correção da coagulopatia e da anemia também pode ser necessária para o manejo ideal.

Anafilaxia:

  • Os pacientes com anafilaxia classicamente manifestam um choque vasogênico, no qual a vasodilatação sistêmica grave e o extravasamento capilar causam subperfusão dos órgãos vitais apesar da volemia corporal total. Embora não seja tecnicamente depleção de volume, o quadro clínico de uma criança em anafilaxia tem alguma sobreposição com pacientes que apresentam choque hipovolêmico, com estado mental alterado, taquicardia e PA baixa.

  • Os lactentes e crianças pequenas podem apresentar sintomas de anafilaxia específicos para a idade, que são diferentes daqueles apresentados por crianças mais velhas e adultos. Por exemplo, sintomas cutâneos e sinais comportamentais súbitos (puxar/arranhar/dedos na orelha, afastamento, choro inconsolável, irritabilidade ou apego a objetos [clinging]) podem ser mais comuns nos lactentes e crianças pequenas, enquanto sintomas respiratórios podem ser mais comuns nas crianças mais velhas.[60]

  • A terapia aguda inicial é realizada com adrenalina intramuscular. A administração pode ser feita por um dispositivo autoinjetável.[60][61]​​​

  • Além disso, são administrados 10 mL/kg de soro fisiológico intravenoso (repetidos conforme necessário para restaurar o volume intravascular e a estabilidade hemodinâmica).[61][62]​ A via intraóssea poderá ser usada se o acesso intravenoso não for possível.

  • Os corticosteroides não são mais recomendados para o tratamento inicial de emergência da anafilaxia ou para a prevenção da anafilaxia bifásica.[63] Anti-histamínicos não devem ser usados normalmente durante o tratamento de emergência da anafilaxia. No entanto, esses agentes podem ser considerados para o tratamento secundário da anafilaxia após o tratamento inicial com adrenalina e estabilização hemodinâmica (por exemplo, tratar urticária e prurido).[63] A anafilaxia refratária pode exigir suporte vasopressor contínuo. Não existem evidências adequadas de que qualquer agente vasopressor seja uma escolha superior comparado a outro.[59]

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