Etiologia
Crianças com comprometimento cognitivo apresentam quociente de inteligência (QI) abaixo da média, <70. Em contrapartida, dificuldades de aprendizagem específicas incluem dificuldades de aprendizagem, mas QI normal. Embora os termos "dificuldade de aprendizagem" e "comprometimento cognitivo" tenham cada qual definições específicas, eles costumam ser utilizados de forma intercambiável em crianças. Há uma ampla gama de etiologias, embora, inevitavelmente, em algumas crianças, o distúrbio não tenha causas identificáveis (idiopáticas).
O comprometimento cognitivo e as dificuldades de aprendizagem podem ser relacionados ao desenvolvimento (congênitos) ou adquiridos.
Causas relacionadas ao desenvolvimento incluem uma variedade de doenças genéticas (como síndrome de Down ou transtornos do espectro autista), exposições durante a gestação, tais como infecções intrauterinas, síndrome alcoólica fetal, medicamentos teratogênicos, nascimento prematuro e hipotireoidismo congênito.
Causas adquiridas incluem infecções do sistema nervoso central (SNC), como meningite bacteriana e encefalite, tumores do SNC, hipóxia, lesão cerebral traumática e privação psicossocial.
Dificuldades de aprendizagem específicas sem comprometimento cognitivo generalizado
Em muitos casos, muitas dificuldades de aprendizado específicas podem ser comórbidas em relação umas às outras (por exemplo, dislexia e distúrbio específico de linguagem) ou com transtorno de deficit da atenção com hiperatividade (TDAH). Todavia, elas são consideradas dificuldades de aprendizado específicas separadas quando outros domínios de cognição são preservados.
Dislexia
Caracterizada pelo comprometimento das habilidades cognitivas relacionadas à leitura; também conhecida como incapacidade específica de leitura.
Geralmente associada com dificuldade na linguagem escrita (disgrafia), especialmente erros ortográficos.
Em contraste a dificuldades na leitura e escrita, disléxicos podem demonstrar facilidade com processamento visual não verbal.[9]
Na maioria dos casos, é provavelmente atribuível a suscetibilidade genética que leva a deficit nas áreas do cérebro responsáveis pela linguagem.[10][11] Foram identificados cerca de 15 genes candidatos diferentes.[12][13]
Discalculia
Condição caracterizada por habilidades em aritmética comprometidas.
A etiologia é desconhecida, mas acredita-se que envolva uma suscetibilidade genética que cause deficit na rede neural envolvida nas habilidades em aritmética.[14]
Transtorno de deficit da atenção com hiperatividade (TDAH)
Condição caracterizada por falta de atenção, hiperatividade e/ou impulsividade.
Embora não seja geralmente classificado como uma dificuldade de aprendizagem, pode ser comórbido com muitas dificuldades de aprendizagem.
Uma combinação de suscetibilidade genética e fatores ambientais (por exemplo, baixo peso ao nascer e tabagismo materno) provavelmente contribui na etiologia.[15][16]
Distúrbio específico de linguagem
Caracterizado pelo uso desordenado da linguagem nas diferentes modalidades (falada, escrita, de sinais etc.), o que pode estar associado com atraso na fala.
Altamente comórbido com dislexia, que pode ser diagnosticada posteriormente na infância.[17]
Pode se dever a uma susceptibilidade genética;[18] alguns casos, nos quais os processos motores da fala são particularmente afetados, foram associados com mutações no gene FOXP2.[19]
Transtorno do processamento auditivo central
Caracterizado pela dificuldade de localizar, diferenciar e/ou reconhecer elementos sonoros, o que pode causar dificuldades específicas de aprendizagem. A definição e o grau em que essa condição constitui uma entidade distinta permanecem controversos.
Transtorno do desenvolvimento da coordenação/dispraxia
Caracterizado pela falta de coordenação, que pode resultar em dificuldades com habilidades motoras finas (escrita) ou dificuldade em coordenar uma simples resposta em tempo hábil em sala de aula (em razão do pensamento desorganizado).[20][21] Alguns autores comentaram que a dispraxia de desenvolvimento a termo deve ser reservada especificamente para crianças com desempenho comprometido de gestos qualificados.[22]
Distúrbios genéticos
Síndrome de Down
Causada por um cromossomo 21 extra e associada a aspectos físicos característicos, baixa estatura e hipotonia.
Crianças com síndrome de Down geralmente apresentam comprometimento cognitivo[23] e podem ter outros transtornos de neurodesenvolvimento, como autismo.[24]
Síndrome do X frágil (SXF)
Causada por uma expansão instável de repetição de trinucleotídeos (ou, muito mais raramente, uma mutação ou deleção pontual) no gene FMR1 no cromossomo X em Xp27.3, que causa perda de função dessa proteína.
Os homens geralmente apresentam atraso no desenvolvimento da linguagem e comprometimento cognitivo leve a moderado, com declínio no desempenho cognitivo após a primeira infância. Na ausência de comprometimento cognitivo, as crianças geralmente apresentam pouca atenção e dificuldades na função executiva e específicas de aprendizagem, particularmente com matemática, coordenação visual e motora e cognição visuoespacial. As habilidades verbais tendem a ser um ponto forte relativo.[25] Cerca de 50% das mulheres com mutações completas apresentam comprometimento cognitivo leve, e muitas têm sintomas de TDAH ou outras dificuldades de aprendizagem.[26][27][28][29]
Homens com síndrome do cromossomo X frágil geralmente atendem aos critérios de transtorno do espectro do autismo, assim como aproximadamente 20% das mulheres com mutações completas. Aqueles que têm autismo apresentam maior comprometimento das habilidades cognitivas e da linguagem e maior probabilidade de convulsões.[29]
Síndrome de Prader-Willi
Causada por uma deleção na região 15q11-13 de origem paterna.
As crianças apresentam atraso generalizado no desenvolvimento durante a primeira infância e comprometimento cognitivo leve.[30]
Síndrome de Angelman
Causada por uma deleção na região 15q11-12 de origem materna.
As crianças apresentam atraso no desenvolvimento e comprometimento cognitivo grave; geralmente não conseguem comunicar verbalmente.[31]
Síndromes de duplicação 15q11
Duplicações no locus associadas com síndromes de Prader-Willi e Angelman estão relacionadas com fenótipos complexos, incluindo epilepsia, comportamento semelhante a autista, comprometimento na fala e problemas de comportamento.[32][33]
Síndrome de William
Causada por uma deleção cromossômica 7q11.23.
A maioria dos indivíduos apresenta atraso no desenvolvimento e comprometimento cognitivo leve a moderado, mas com relativa preservação da linguagem falada.[34]
Síndrome de Rett
A maioria dos indivíduos acometidos são meninas. Em 80% das meninas, o distúrbio deve-se a uma mutação esporádica no gene da proteína 2 de ligação a metil-CpG (MECP2). Uma forma mais rara, com espasmos infantis, ocorre com uma mutação das linhas germinativas no gene que codifica a quinase 5 dependente de ciclina (CDK5).
Após um período de desenvolvimento normal de 6 a 18 meses após o nascimento, as meninas desenvolvem comprometimento cognitivo grave ou profundo que resulta em regressão das habilidades motoras e de linguagem.[35][36]
Síndrome de Turner
Distúrbio que acomete mulheres, caracterizado pela perda parcial ou total de um dos cromossomos X.
O comprometimento cognitivo é raro, mas dificuldades de aprendizagem específicas são comuns.[37]
Esclerose tuberosa
Distúrbio de padrão autossômico dominante com penetrância variável. A esclerose tuberosa resulta de uma mutação genética em um dos dois genes: gene 1 do complexo da esclerose tuberosa (cromossomo 9q34) ou gene 2 do complexo da esclerose tuberosa (cromossomo 16p13.3). Esses genes codificam as proteínas que atuam como supressoras de tumor.
Aproximadamente 50% dos indivíduos apresentam comprometimento cognitivo leve a moderado, e 20% a 30% apresentam comprometimento profundo. Crianças sem comprometimento cognitivo geralmente apresentam dificuldades de aprendizagem específicas.[38]
Síndrome de DiGeorge
Causada por uma deleção do cromossomo 22.
Frequentemente observa-se um atraso no desenvolvimento na primeira infância. As crianças geralmente apresentam quociente de inteligência (QI) mediano ou comprometimento cognitivo leve. Dificuldades de aprendizagem específicas são comuns em crianças sem comprometimento cognitivo.[39]
Síndrome da deleção 16p11.2
Associada com distúrbios do espectro autista, assim como algumas dificuldades de aprendizado específicas, especialmente distúrbio específico de linguagem e transtorno do desenvolvimento da coordenação.[40][41]
As habilidades cognitivas variam; o histórico familiar contribui para diferenças fenotípicas.[42]
Autismo e transtornos relacionados
Transtorno do espectro autista
Transtorno caracterizado por comprometimentos qualitativos na comunicação e interação social, com padrões restritivos, repetitivos e estereotipados de comportamentos e interesses. Há com frequência uma história de atraso na linguagem (atraso na fala de palavras isoladas ou frases simples), e 25% das crianças perdem habilidades de linguagem previamente adquiridas (regressão).
Há fortes evidências de uma suscetibilidade genética subjacente. Algumas síndromes genéticas bem caracterizadas estão associadas com autismo (por exemplo, síndrome de Down, síndrome do cromossomo X frágil, esclerose tuberosa, síndromes da deleção 15q11 e 16p11.2). Estima-se que a hereditariedade do autismo não sindrômico seja de até 80%.[43] No entanto, na maioria dos casos, os fatores de risco genéticos específicos são desconhecidos.[44]
Crianças com autismo muitas vezes apresentam comprometimento cognitivo. Aquelas com quociente de inteligência (QI) normal comumente apresentam dificuldades de aprendizagem específicas.[45]
Categorias diagnósticas anteriores da síndrome de Asperger (comprometimento de interação social e comunicação, com um padrão rígido e repetitivo de comportamento, mas sem atraso na linguagem) e transtorno global do desenvolvimento estão incluídas no distúrbio do espectro autista no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição, Texto Revisado (DSM-5-TR).[46]
O diagnóstico precoce do transtorno do espectro autista é crucial para uma intervenção precoce, apoio, reconhecimento e tratamento de condições concomitantes.[47]
Transtorno de comunicação social (pragmático)
Caracterizado por dificuldades persistentes na comunicação verbal e não verbal, limitação na participação social, relacionamentos e/ou desempenho acadêmico.[48]
Difere do autismo e não é acompanhado por comportamento de padrões restritos ou repetitivos.
Infecções intrauterinas e medicamentos
Citomegalovírus (CMV)
Uma infecção durante a gestação produz defeitos neurocognitivos e do neurodesenvolvimento. Os efeitos são mais graves quando o CMV é contraído durante o primeiro e o segundo trimestres.[49]
Toxoplasmose
A infecção pode ocorrer ou ser reativada durante a gestação. A infecção primária tem maior probabilidade de causar comprometimento neurológico, coriorretinite e deficiência visual.[50]
Rubéola
Pode resultar em síndrome da rubéola congênita após infecção no primeiro trimestre. Pode causar comprometimento neurológico, surdez, cegueira e defeitos cardíacos.[51]
A rubéola hoje é rara em razão da imunização no mundo desenvolvido.
Síndrome alcoólica fetal (SAF)
Uma das causas mais comuns de comprometimento cognitivo.[3] A SAF pode ser causada por uso pesado de forma regular ou intermitente de bebidas alcoólicas (4-6 doses por ocasião) durante a gestação.[52]
Comprometimento cognitivo e dificuldades de aprendizagem específicas são comuns em crianças com a síndrome completa.
Medicamentos teratogênicos
Várias drogas recreativas e medicamentos de prescrição podem ser teratogênicos.[53] Historicamente, medicamentos antiepilépticos (especialmente ácido valproico) têm sido a principal causa de teratogenicidade.[54]
Hoje em dia, essa causa é menos comum em vista do maior grau de conscientização sobre os efeitos dos medicamentos e das novas práticas de prescrição médica.
Eventos perinatais
Nascimento prematuro extremo
A probabilidade de comprometimento cognitivo e neurológico com nascimento prematuro é variável; existe maior probabilidade na presença de outros fatores complicadores, como retardo de crescimento intrauterino ou infecções congênitas.[49][55] A probabilidade de morbidade aumenta com a precocidade da idade gestacional e baixo peso ao nascer.[56]
Hipóxia perinatal
Distúrbios do sistema nervoso central (SNC)
Meningite bacteriana
A meningite aguda provavelmente não se manifesta como dificuldade de aprendizagem, mas uma história de meningite na infância pode ser responsável por comprometimento cognitivo residual e ser a causa de dificuldades de aprendizagem específicas.
Meningite por Pneumococcus ou por Haemophilus tem maior probabilidade de causar comprometimento cognitivo.[59][60]
Encefalite
A encefalite devida ao vírus do herpes muitas vezes causa deficiências, particularmente em crianças pequenas.[59]
Tumor
Tumor intracerebral maligno pode ser causado por mutações novas (conhecidas como mutações de novo) ou ser secundário a outro transtorno de neurodesenvolvimento (por exemplo, astrocitoma de células gigantes na esclerose tuberosa).
As crianças muitas vezes apresentam comprometimento cognitivo ou dificuldades de aprendizagem específicas, resultantes do próprio tumor ou do tratamento (cirurgia, radioterapia ou quimioterapia).[61]
Lesão cerebral traumática
A lesão cerebral traumática pode ocorrer após quedas, acidentes de trânsito ou abuso infantil. A probabilidade de comprometimento cognitivo aumenta com a gravidade da lesão, refletida pelo grau de coma e pela extensão da lesão cerebral. Em crianças sem comprometimento cognitivo, dificuldades comportamentais ou de aprendizagem específicas são comuns.[62][63][64]
Hipóxia/asfixia
Embora seja um evento raro na infância, pode ocorrer hipóxia ou asfixia após parada cardíaca, sufocamento ou quase afogamento. A probabilidade de comprometimento cognitivo ou neurológico é alta em crianças com episódios fora do hospital; crianças com lesões cerebrais visíveis em exames de ressonância nuclear magnética (RNM) têm probabilidade de apresentar comprometimento cognitivo considerável.[65][63]
Convulsões
Epilepsia tipo ausência
As crianças com epilepsia tipo ausência podem apresentar dificuldades específicas com habilidades motoras finas e função executiva.[66]
O transtorno de deficit da atenção com hiperatividade (TDAH) é comum em crianças com crises de ausência.[67]
Afasia epiléptica adquirida (síndrome de Landau-Kleffner)
A síndrome de Landau-Kleffner apresenta-se com uma deterioração gradual da função de linguagem, tendo início geralmente por volta dos 3 a 6 anos de idade, associada a convulsões.
Caracteristicamente, o eletroencefalograma (EEG) apresenta estado de mal epiléptico elétrico durante o sono (electrical status epilepticus during sleep, ESES).
Até 20% dos pacientes podem apresentar mutações no GRIN2A; diversas outras causas genéticas também foram identificadas. Mutações no GRIN2A também podem causar dificuldades de fala na ausência de convulsões clínicas.[68]
Encefalopatias epilépticas
Crianças com encefalopatias epilépticas apresentam convulsões e regressão do desenvolvimento em múltiplos domínios (incluindo linguagem, comportamento, memória e capacidades motoras); o desenvolvimento é geralmente normal até 2 a 4 anos de idade.
Como na síndrome de Landau-Kleffner, EEG apresenta ESES.[69]
Distúrbios metabólicos/endocrinopatias
Hipotireoidismo congênito
Distúrbio heterogêneo causado por insuficiência parcial ou total de desenvolvimento da glândula tireoide, ou por defeitos na produção do hormônio tireoidiano.[70]
Os bebês parecem normais ao nascimento, mas a ausência do hormônio tireoidiano causa retardo do crescimento pôndero-estatural, atraso no desenvolvimento e comprometimento cognitivo quando a condição não é identificada e tratada rapidamente.
Em países desenvolvidos, o rastreamento de todos os neonatos para hipotireoidismo congênito é realizado, idealmente, após 24 horas de vida (de preferência, entre 48 e 72 horas de vida) e antes da alta hospitalar ou de 1 semana de vida; consulte os protocolos locais.[70][71] Evidências sugerem que até 20% dos casos podem ser despercebidos na triagem de neonatos, e casos adicionais podem ser identificados por um segundo rastreamento a 2 semanas de vida.[72]
Erros inatos do metabolismo
A fenilcetonúria é um distúrbio genético autossômico recessivo caracterizado por uma deficiência na enzima hepática fenilalanina hidroxilase. O acúmulo de fenilalanina no sangue causa mielinização anormal, redução do tamanho cérebro, convulsões e comprometimento cognitivo.[73]
A fenilcetonúria já foi uma das causas mais comuns de comprometimento cognitivo; entretanto, com a implementação de rastreamento de neonatos e tratamento precoce no mundo desenvolvido, o comprometimento cognitivo tornou-se raro atualmente.
Causas psicossociais
Privação
Negligência, pobreza extrema ou institucionalização podem deixar as crianças sem estímulo e oportunidades suficientes para se desenvolverem normalmente. A probabilidade de comprometimento cognitivo ou de dificuldades de aprendizagem específicas está relacionada ao grau de privação.
Em crianças que vivem sob privação significativa, há evidências de desfechos melhores em longo prazo quando esse quadro é revertido, mas não de recuperação completa.[74][75]
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