Etiologia
O tipo mais comum de hemocromatose (tipo 1) envolve mutações no gene HFE, que às vezes é chamado de gene da hemocromatose e está localizado no braço curto do cromossomo 6.[25] Na descrição inicial da descoberta do gene HFE, descobriu-se que a maioria dos indivíduos com hemocromatose eram homozigóticos para a mutação C282Y, com uma proporção menor tendo uma única cópia de C282Y juntamente com uma única cópia de uma segunda mutação no HFE, H63D. Ao contrário da C282Y, a mutação H63D é encontrada em pessoas de muitas etnias diferentes.[26] Uma mutação S65C no gene HFE foi estudada, mas parece não apresentar uma função causadora na carga de ferro.[4][7] A homozigosidade para C282Y é o genótipo associado à doença mais comum em pacientes com hemocromatose clinicamente aparente.[4][7][8]
Estudos mais recentes levaram a uma reavaliação do papel da mutação H63D. Já se sabe há algum tempo que alguns heterozigotos compostos (C282Y/H63D) apresentam perfis de ferro aumentados, mas as consequências da sobrecarga de ferro são raras em pacientes com esse genótipo.[27] Quando heterozigotos compostos C282Y/H63D (e homozigotos H63D) apresentam sobrecarga de ferro, geralmente é no contexto de outras condições conhecidas por causar alterações no metabolismo do ferro (por exemplo, alcoolismo ou síndrome dismetabólica [obesidade, hipertensão, hiperlipidemia, diabetes mellitus do tipo 2 e hiperuricemia]). O H63D não é, portanto, mais considerado uma mutação causadora de doença, mas sim uma variante que pode predispor a alterações leves no nível de ferro.[4][7]
Indivíduos com penetrância fenotípica (a proporção de indivíduos portadores de uma variante particular de um gene que expressa um caráter associado) correm o risco de desenvolver doença relacionada à sobrecarga de ferro (IORD). A penetrância fenotípica é identificada por marcadores elevados de ferro sérico (saturação de transferrina e/ou ferritina sérica) e varia entre homens e mulheres. Um estudo mostrou níveis séricos de ferritina significativamente maiores e saturação de transferrina em homozigotos C282Y do que naqueles com outros genótipos, com níveis elevados de ferritina sendo encontrados em 82% dos homens e 55% das mulheres homozigotos C282Y não tratados.[11] A proporção dos indivíduos com penetrância fenotípica com risco de desenvolver IORD tem sido alvo de controvérsia. Os dados disponíveis indicam que menos da metade dos homozigotos C282Y com cargas de ferro significativas desenvolvem consequências clinicamente significativas. Mulheres, em particular, aparentemente apresentam baixo risco de IORD.[23][28] Vários estudos documentaram que o risco de IORD, incluindo cirrose, é baixo em homozigotos C282Y com ferritina sérica inferior a 2250 picomoles/L (1000 nanogramas/mL).[29][30][31] Além do sexo, outros fatores podem determinar a tendência a acumulação de ferro, bem como a probabilidade de IORD. Eles incluem mutações genéticas ainda não identificadas, fatores ambientais, como sangramento ou doação de sangue, consumo de bebidas alcoólicas e infecções, como hepatite viral.[32]
Raramente, a hemocromatose decorre de mutações nos genes que codificam hepcidina, ferroportina-1, receptor de transferrina 2 ou hemojuvelina.[4][7]
Fisiopatologia
O HFE participa da detecção e regulação das reservas de ferro no organismo por meio da modulação da expressão do hormônio hepcidina que regula o ferro. Em homozigotos de C282Y, a expressão gênica de hepcidina hepática é inadequadamente baixa, o que permite absorção duodenal contínua de ferro apesar das reservas de ferro completas.[33] Além disso, sob condições de baixa hepcidina, os macrófagos liberam continuamente o ferro derivado de eritrofagocitose. Esses fenômenos provavelmente são responsáveis pela elevação de ferro sérico e saturação de transferrina que é característica de hemocromatose.
Em pacientes com hemocromatose avançada, completamente penetrante, o ferro se acumula em vários órgãos, incluindo fígado, coração, adeno-hipófise, pâncreas, articulações, entre outros.[4][7][8] Presume-se que as manifestações clínicas de hemocromatose são o resultado direto dos efeitos pró-oxidantes do ferro em excesso nesses órgãos. A relação entre ferro em excesso e danos aos órgãos é mais claramente estabelecida no fígado (onde fibrose significativa ocorre somente com cargas de ferro substanciais) e no coração. Nesses órgãos, a remoção de ferro em excesso melhora o funcionamento dos órgãos e pode resultar em reversão da fibrose.[34] Embora o diabetes frequentemente seja atribuído a danos pancreáticos resultantes da acumulação de ferro, dados mais recentes revelaram que a prevalência de diabetes entre homozigotos C282Y não é elevada em comparação à população em geral, exceto no contexto de cirrose, no qual há uma associação conhecida de diabetes com cirrose de várias etiologias.[28][30] Contudo, o controle de diabetes pode melhorar após a remoção do excesso de ferro. Por outro lado, a flebotomia não necessariamente resulta em melhora dos sintomas articulares.[35][36][37]
Classificação
American College of Gastroenterology[4]
Existem quatro tipos principais de hemocromatose.
Tipo 1 (mutações no gene HFE)
Distúrbio autossômico recessivo resultante de uma mutação do gene HFE no cromossomo 6. É responsável pela maioria dos casos.
Hemocromatose hereditária do tipo 1A (homozigoto, mutações C282Y do HFE); hemocromatose hereditária do tipo 1B (heterozigoto composto, mutações C282Y e H63D do HFE); hemocromatose hereditária do tipo 1C (mutações S65C do HFE).
Pacientes com hemocromatose do tipo 1A ou tipo 1B apresentam artropatia, pigmentação da pele, lesão hepática, diabetes mellitus, disfunção endócrina, cardiomiopatia, hipogonadismo.
Pacientes com hemocromatose do tipo 1C podem ter elevações no ferro/ferritina sérica, sem evidência de deposição de ferro nos tecidos.
Tipo 2 (hemocromatose juvenil)
Distúrbio autossômico recessivo como resultado de uma mutação do gene da hemojuvelina (hemocromatose hereditária juvenil do tipo 2A) ou gene da hepcidina (hemocromatose hereditária juvenil tipo 2B).
O locus do tipo 2A é 1q21; o locus do tipo 2B é 19q13.
Início precoce (<30 anos); hipogonadismo e cardiomiopatia prevalentes.
Tipo 3 (mutações no gene do receptor de transferrina 2)
A hemocromatose hereditária do tipo 3 é um distúrbio autossômico recessivo resultante de uma mutação no gene do receptor 2 da transferrina (7q22).
Os pacientes apresentam artropatia, pigmentação da pele, lesão hepática, diabetes mellitus, disfunção endócrina, cardiomiopatia, hipogonadismo.
Tipo 4 (doença da ferroportina [FPN])
Distúrbio autossômico dominante como resultado de uma mutação do gene de ferroportina-1 (SLC40A1) (2q32).
Hemocromatose hereditária tipo 4A (doença do FPN, perda de função para excreção de FPN): caracterizada por deposição de ferro no baço, menor tolerância à flebotomia e anemia.
Hemocromatose hereditária tipo 4B (doença do FPN não clássica, ganho de função): associada a fadiga e dor nas articulações.
A Sociedade Internacional para o Estudo do Ferro em Biologia e Medicina (BIOIRON Society)[5]
A BIOIRON Society desenvolveu um método alternativo de classificação, que considera ser mais fácil de usar na prática clínica do que a classificação existente.[5] A sua nova classificação proposta, publicada em 2022, envolve considerações clínicas e moleculares e descarta a doença da ferroportina devido ao seu fenótipo distinto.[5] Esta nova classificação proposta inclui as categorias: relacionada ao HFE, não relacionada ao HFE, digênica (mutações em dois genes diferentes envolvidos no metabolismo do ferro) e molecularmente indefinida.[5]
Recomendações francesas para o manejo da hemocromatose HFE: Haute Autorité de Santé[6]
O sistema de estadiamento a seguir pode ser usado para orientar a terapia:
Estágio 0: homozigosidade da C282Y com saturação normal de transferrina sérica e ferritina normal, sem sintomas clínicos
Estágio 1: homozigosidade da C282Y com saturação elevada de transferrina plasmática (>45%) e ferritina normal, sem sintomas clínicos
Estágio 2: homozigose de C282Y com saturação de transferrina aumentada (>45%) e ferritina sérica (>300 microgramas/L em homens, >200 microgramas/L em mulheres), mas sem sintomas clínicos
Estágio 3: homozigosidade de C282Y com saturação elevada de transferrina (>45%) e ferritina sérica (>300 microgramas/L em homens, >200 microgramas/L em mulheres), bem como sintomas clínicos que afetam a qualidade de vida que são atribuídos a essa doença (por exemplo, astenia, impotência e artropatia)
Estágio 4: homozigose de C282Y com saturação elevada de transferrina (>45%) e ferritina sérica (>300 microgramas/L em homens, >200 microgramas/L em mulheres) e sintomas clínicos que manifestam lesão de órgão predispondo à morte precoce (por exemplo, cirrose com risco de carcinoma hepatocelular, diabetes insulinodependente e cardiomiopatia).
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